Mais do que lusofonia precisamos de lulofonia |
Se tivesse que se afastar da presidência do Brasil hoje, Lula da Silva se retiraria como a voz política mais importante do chamado de Sul global a expressar em público o que poucos tiveram coragem de dizer: é genocídio o que está acontecendo na Palestina. Seu posicionamento apenas pecou por tardio.
Disse-o publicamente ao mundo pela primeira vez (18/02) em conferência de imprensa em solo africano quando da sua participação na 37ª Cúpula da União Africana em Adis Abeba, capital da Etiópia. Não se intimidou com a vociferação vinda do regime sionista que incluiu humilhação pública do embaixador brasileiro em Telavive, repetiu-o em entrevista e atos públicos no Brasil e triplicou a acusação (28/02) na 46ª Cúpula do Mercado Comum e Comunidade do Caribe – CARICOM.
Na presença do secretário-geral da ONU, António Guterres, acionou a quarta velocidade na fala (1/03) propondo uma moção da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) para exigir o fim imediato do genocídio em Gaza, durante uma reunião do bloco regional na ilha caribenha de São Vicente e Granadinas. Na quarta-feira (6/03), aplicou a quinta, em conferência de imprensa em Brasília junto ao chefe do governo espanhol, Pedro Sanchez, ao ser questionado por um jornalista espanhol se mantinha que é genocídio a guerra de Israel contra a Palestina. À mesma pergunta, o governante europeu, não foi capaz de pronunciar uma única vez a palavra “genocídio” na resposta que deu, ficando-se por divagações para boi dormir. Lula nasceu nordestino e soube ser palestino quando a a história o chamou.
No espaço chamado lusófono, não consta que tenha havido manifestações públicas de apoio ao posicionamento firme do tido para milhões como o guerreiro do povo brasileiro, vindas de respectivos governos e de lideranças políticas. No caso de governos, se o fizeram, foi por canais da deprimente diplomacia da delicadeza que está mais para covardia quando o momento exige posicionamentos públicos como o da firmeza do retirante nordestino que soube estar à altura de si mesmo como a grande voz do chamado Sul Global, ''o cara'' como Obama a ele se referiu e o elogiou durante reunião do G20 em Londres em abril de 2009. Mais estranho e incompreensível foi, até agora, a ausência de marchas de solidariedade ao povo palestino em países africanos de língua oficial portuguesa, cujos movimentos de libertação viam, como sua, a luta pela liberdade da Palestina.
Mas não é sobre esse assunto que foi, segue e continuará sendo motivo de acesos debates no Brasil e mundo afora que vou aqui refletir, mas sim no que chamo de lulofonia.
Por ela entendo a capacidade de ter, nos espaços chamados lusófonos, lideranças como Lula da Silva com sensibilidade humana e social, acompanhadas de perspicácia política, para fazer leituras corretas da realidade e dos acontecimentos e, em consequência, vocalizar com coragem o que deve ser dito, compreendido e realizado. E, por críticas válidas que da esquerda se possa fazer às políticas neoliberais do governo do atual presidente do brasileiro, há que se reconhecer, nele, um incansável lutador em favor dos pobres da terra e de demais causas justas por um mundo justo.
Neste sentido, particularmente em África, mais do que lusofonia, o que precisamos é de lulofonia. Lideranças políticas lulófonas para que os pobres sejam colocados no orçamento, como diz Lula, e para fazerem o que Agostinho Neto apontou como o mais importante: resolver os problemas do povo. Para além de lideranças políticas, precisamos também de empresários, acadêmicos, jornalistas, intelectuais, fazedores de opinião e gente de cultura sem complexos voluntários de inferioridade face ao "Jardim de Borrell", essa Europa envelhecida, embrião da chamada de "civilização judaico-cristã" que está mais para ''barbárie-judaica-cristã'', espaço decadente e suicida nas suas autoproclamadas superioridades moral, intelectual, midiática, econômica, religiosa, militar, financeira e outras.
Não me move qualquer sentimento anti-lusitano quando defendo que devemos ser mais africanos e lulófonos do que lusófonos. Nossos libertadores e libertadoras sempre fizeram questão de nos lembrar que nossas lutas nunca foram contra o povo português, mas sim contra os famigerados sistemas colonialista e neocolonialista de seus governos.
A chamada lusofonia está aí presente, há séculos, nos nossos espaços, sem ter sido convidada. Nossas ancestralidades a receberam de braços abertos e logo ela abusou da hospitalidade encontrada, e se nos impôs com seus abraços, bota, bíblia e canhangulo para nos escravizar, colonizar, explorar, desafricanizar e europeizar, fazer de nós maus africanos e bons europeus.
Não queremos uma lusofonia que funcione como espaço de memória de nostálgicos saudosismos imperiais, representada por uma organização como a atual CPLP criada de cima para baixo, com sede em Lisboa, funcionando como um recriado e camuflado ministério das colônias para a afirmação global de Portugal e satisfação de interesses particulares mesquinhos e gananciosos de nossas elites aportuguesadas, ocidentalizadas, e de perpetuação da mentalidade escrava e colonizada dos nossos povos. Uma lusofonia, diria Fanon, de pele negra que em busca de se afirmar e humanizar se desumaniza, buscando máscaras brancas, uma lusofonia de novos Eusébios e Pelés que marquem golaços na própria baliza.
Não queremos uma lusofonia que nos defina, que nos dite o rumo a seguir fora do nosso caminho natural e inevitável, o panafricanismo, alienando e usando nossas massas cinzentas e de bolsos recheados no papel de sabujos de abertas ou veladas agendas neocoloniais, africanos fingidos que nao passam de lacaios e cachorros dos brancos, como lhes chamou Amílcar Cabral.
Dispensamos uma lusofonia onde haja pretos, em África, que que se sentem mais europeus do que africanos, pretos, na Europa, que se sentem mais europeus do que os europeus. De pretos, no Brasil, que se acham uma nova etnia criada pelos europeus nas Américas, sempre descendentes, entre outros europeus, de italianos, alemães, ingleses ou holandeses (nem de portugueses se veem como descendentes), superior à dos seus irmãos africanos no continente.
Dizemos não a uma lusofonia de domínio do bacalhau e do vinho tinto no Natal em detrimento das nossas moamba, calulu, cachupa, caril de amendoim, e nossos outros quitutes. Não, a uma lusofonia de domínio de telenovelas cariocas e paulistas onde negros são apresentados como a escória da sociedade brasileira e não, a uma lusofonia de expansão do sionismo cristão evangélico a partir do Brasil. Se houver vinho, que cultivemos as nossas vinhas e abasteçamos os nossos mercados e, porque não, o exportemos também para a Europa e as Américas. Se houver telenovelas, que produzamos as nossas, contando as nossas próprias histórias e dando-as a conhecer ao mundo. Religiões de mercadores da fé e falsificadores de mentes, dispensamos!
Todavia, seguindo os ensinamentos dos nossos ancestrais sobre nossa relação com Portugal, e o mesmo também se aplica hoje ao Brasil de supremacia branca refletida na Praça dos Três Poderes em Brasília, não temos que negar a realidade, por mais trágica que tenha sido a nossa história comum de relação com ambos os países. Acima de tudo, falamos a mesma língua e só através dela poderemos conversar com respeito, franqueza e seriedade uns com os outros, para reparar o passado e construir um futuro comum de acordo com as conveniências e tendo em atenção a soberania de cada um.
Cabe-nos a missão de saber conviver com a lusofonia, lulofonizando-a com pensamentos e sagradas esperanças de Agostinho Neto, Amílcar Cabral, Samora Machel, Alda Espírito Santo e outras/os, eliminando todas as formas abertas e subtis de neocolonialismos se quisermos ser nós mesmos, povos africanos e de origem africana que, para além das respectivas línguas maternas, têm também no belo e cantante pretuguês, como diria a filósofa e ativista afro-brasileira Lélia Gonzalez, a língua de berço, e a que nós, obviamente, preferimos chamar português de África.
Como referido, não queremos uma lusofonia imposta de cima para baixo, em nosso nome, com base em afetos paternalistas, sem termos, como povos, sido consultados para saber o que na prática tais afetos significam. Dispensamos a lusofonia com tutelas, hierarquias, afetos sem respaldo na realidade que nos trata em razão do país de origem, cor da pele, dos olhos e da conta bancária de cada um quando aterramos em Lisboa, Porto, São Paulo, Rio ou Brasília.
Queremos uma comunidade de vozes lulófonas para nos lembrarem, sempre, a não virarmos costas ao nosso continente, como o Brasil antes de Lula estava de costas voltadas para a América Latina, olhando com complexo de vira-lata só para os EUA e para a Europa. Somos, sim, por razões óbvias já citadas, pela unidade fraternal entre países e povos chamados lusófonos mas, em África, somos acima de tudo pela independência e pela unidade de todos os povos africanos, dentro e fora do continente. Somos pela fraternidade e solidariedade com todos os povos do mundo, princípios fundacionais consagrados em nossas lutas pela independência e legados por nossos libertadores e libertadoras.
Não queremos e nem aceitamos ser vistos e tratados como quintal ou a fazenda de um grande Portugal dos Pequenitos, ou como irmãos bastardos de um grande Brasil e de sua branquitude racista, que nos olha com desdém e apenas vê em nós um grande manancial de recursos naturais para explorar e se tornar ainda maior, como no passado o Pe Antônio Vieira via em nossos ancestrais commodities sem os quais não haveria o que é hoje o maior dos chamados lusófonos. Onde for necessário, temos de ter a coragem de cortar elos perniciosos, laços umbilicais e de afetos que não permitem a nossa emancipação e autodeterminação como povos livres e soberanos.
Fazendo uma distinção entre o que Malcolm X viu como o negro da casa e o negro do campo, dizemos alto e bom som que não queremos ser os primeiros, os da casa grande chamada de CPLP. As nossas independências foram conquistadas com muito sangue, suor e lágrimas por negros do campo, para voltarmos a ser os domésticos da casa portuguesa concerteza e da casa grande brasileira.
Queremos uma comunidade de vozes lulófonas para cumprir Cabral fazendo a reafricanização dos espíritos e não a sua desafricanização através de armadilhas políticas, culturais, acadêmicas, diplomáticas, econômicas, financeiras, midiáticas, militares, religiosas e outras para continuarem a perpetuação da falsificação de nossas consequências. Obviamente, como não podia deixar de ser, queremos também uma comunidade lulófona que cumpra os nobres ideais de abril que os nossos libertadores partilharam e ajudaram com suas lutas a fazer acontecer para libertar Portugal do fascismo salazarista.
Queremos uma lulofonia com lideranças que não tenham receio de confrontar o passado colonial e de escravidão, exigindo o adiado pedido de desculpa aos colonizadores e principais beneficiários do comércio transatlântico de milhões de nossos ancestrais e fazendo, elas mesmas, mea culpa em nome de chefias então cúmplices na tragédia. Lula, atendendo a reivindicações de movimentos negros brasileiros, teve a grandeza de fazer isso em 14 de abril de 2005 na Ilha de Gorée (Senegal) e deu alguns passos concretos no caminho da justiça reparativa ampliando políticas de ações afirmativas para promover a inclusão e participação de segmentos historicamente discriminados no acesso à educação, saúde, emprego, bens materiais, entre outros - e com tudo isso, não pretendemos dizer que Lula é um santo!
Quando falamos e reivindicamos sobre o passado, não buscamos qualquer tipo de revanchismo histórico. Falamos no sentido de termos uma boa conversa entre todos para que os nossos povos conheçam a história que lhes foi omitida e para que horrores e momentos como os da escravatura e do colonialismo não mais se repitam, sob qualquer forma. O futuro depende da construção da memória coletiva sobre o passado, no presente.
FONTE/CRÉDITOS: Alberto Monteiro de Castro
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