segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

TOMO MMLIII - ENTRE O PÉ E O PEDAL


Nunca fui exatamente fã dos enlatados norte-americanos, mas havia algo nos Flintstones que me fascinava. O desenho trazia as tecnologias do século XX adaptadas ao tempo dos dinossauros — como um dragão servindo de aquecedor a gás na hora do banho. O que mais me encantava, porém, eram os carros: veículos cujo motor eram os próprios pés.

Essa lógica, a dos pés como força motriz, embalava meus sonhos de criança. Sonhos alimentados pelas vitrines das lojas Pirani, Mesbla e Mappin, onde carrinhos reluzentes eram expostos. Sem televisão em casa, restavam os anúncios de rádio e as idas ao centro da cidade, que despertavam em nós uma inveja inocente. Essa inveja, quase sempre, nos levava à marcenaria, onde nasciam os carrinhos de rolemã.

Foi nesse cenário que, em minha pré-adolescência, ocorreu o golpe militar — batizado de “revolução” por uma manobra jurídica. O golpe não trouxe apenas torturas, assassinatos e exílios; trouxe também o sonho de um Brasil potência. Um sonho construído sobre bases frágeis: abandonamos a malha ferroviária e investimos pesadamente no transporte rodoviário, em um país sem petróleo, sem poupança e sem parque industrial consolidado. Era como viver o enredo dos Flintstones: uma realidade irreal, um dragão aquecedor ou um carro movido a pés.

Com o tempo, os encantos do golpe se desfizeram. Restaram as dúvidas externas e, internamente, as engenharias improvisadas das crianças — como eu — que inventavam soluções para os inalcançáveis carrinhos de brinquedo. Mas o Brasil, conduzido por uma burguesia entreguista, decidiu sair da era dos dinossauros para entrar na era da energia nuclear. O erro não estava no sonho, mas no entreguismo.

Pouco mais de uma década depois, ainda sob o comando dos militares, o país seguiu o caminho das grandes burguesias mundiais e embarcou no neoliberalismo. O processo de industrialização foi abandonado, o mesmo que já havia sepultado o modal ferroviário. O resultado foi a desindustrialização: fecharam-se as tecelagens da Mooca.

Enquanto isso, a China — com uma população seis vezes maior que a brasileira e um PIB menor — aproveitou o espaço. Passou a exportar os tecidos que deixamos de produzir, justamente porque lá não havia as conquistas sindicais que aqui existiam.

Quatro décadas depois, chegamos à globalização. Aquele país que o capital escolheu para importar tudo tornou-se potência em todas as áreas, inclusive na tecnologia digital e espacial. O Brasil, por sua vez, viu seu PIB se apoiar no setor de serviços e na especulação financeira — ganhos restritos a quem nunca “sacolejou” num trem da Central.

O neoliberalismo sepultou não apenas a indústria, mas também a criatividade das crianças que, sem dinheiro, improvisavam carrinhos de rolemã.

Consequência: estamos muito distantes de possuir o parque industrial que tínhamos no início do século passado.

Talvez os Flintstones estejam fazendo falta. Não pelo humor ingênuo, mas porque seus carros movidos a pés nos lembravam que a imaginação pode superar adversidades. E é justamente essa imaginação que precisamos resgatar para pensar um Brasil diferente.

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