sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Só há terroristas em Gaza, segundo a hipocrisia mundialmente conhecida de Israel

Em Gaza só há terroristas. Não há mulheres, não há idosos, não há crianças, não há socorristas, não há jornalistas – só terroristas. Se não pegam em armas, ajudam terroristas, cruzam-se nas ruas com terroristas, compram pão a terroristas. 
Ou então são desde pequeninos terroristas em potência, e há que cortar o mal pela raiz. De qualquer forma, são alvos. E a responsabilidade por mais de dez mil bombas israelitas terem caído sobre si, destruindo milhares de casas, hospitais, escolas, mesquitas e igrejas é deles, por serem terroristas e estarem encarcerados onde não deviam. Não há civis, só terroristas contra uma das forças armadas mais poderosas do mundo.

É assim que o Estado de Israel e o seu governo mais extremista de sempre (o que não é coisa pouca) veem as 2,5 milhões de pessoas que há 17 anos vivem cercadas na Faixa de Gaza. Israel matou num mês mais de dez mil terroristas e dizimou dezenas de famílias inteiras de terroristas. Os terroristas escrevem os seus nomes nos braços e nas pernas para que, caso sejam mortos, os seus corpos possam ser identificados. Há famílias de terroristas a separarem-se para não morrerem todos na mesma casa, para que o nome de família perdure de alguma forma.

O ataque do Hamas de 7 de outubro foi um choque brutal para a sociedade israelita e libertou as forças que há muito gestavam na sociedade, radicalizando-a à direita. Ou Israel seria uma democracia ou um Estado supremacista judaico. O certo é que não podia ser ambos. O ataque deu ao governo extremista a razão perfeita para finalmente tentar resolver o que os seus antecessores não conseguiram desde 1967: limpar a Faixa de Gaza de palestinianos. As altas chefias israelitas, tão radicalizadas como os seus líderes políticos, abraçaram a missão e os colonos sionistas receberam armas do ministro da Segurança Nacional para continuarem a matar, a destruir e a roubar terras na Cisjordânia. A desumanização dos palestinianos é total: só há terroristas.

Se os palestinianos resistem teimosamente ao assédio, às humilhações e às violências nos mais pequenos pormenores no seu dia a dia, há que escalar mal a oportunidade surja: transformar Gaza num autêntico inferno com o disparo de milhares de bombas. Isolá-la ainda mais do mundo e terraplanar tudo, não deixar pedra sobre pedra. É a punição coletiva de um povo e a brutalidade da resposta israelita insere-se que nem uma luva na Doutrina Dahiya das Forças de Defesa de Israel (IDF). É intencional e é um genocídio. É um crime contra a humanidade e assim deve ser chamado, sem medos nem cedências.

As forças armadas israelitas habituaram-se até 1973 a combater os exércitos convencionais dos Estados árabes. Saíram vitoriosas de todas elas, muito por causa do seu grande padrinho, os Estados Unidos, mas depois os contornos da situação bélica mudaram. A resistência armada palestiniana reorganizou-se, primeiro com a OLP, depois com o Hamas e a Jihad Islâmica, e o Hezbollah surgiu no Líbano na sequência da desastrosa invasão israelita de 1982. A assimetria militar passou a ser outra.

Os militares israelitas – e o seu complexo militar-industrial, a sua grande indústria nacional exportadora testada nos palestinianos – não tiveram pudor em adaptar-se às novas dinâmicas bélicas: qualquer ataque com mísseis ou guerrilheiros contra Israel, independentemente de quem o faça, sofrerá retaliações assombrosas. Tudo será um alvo, não haverá civis. Na guerra assimétrica contra o Hamas e o Hezbollah, Gaza e Beirute (e o Sul do Líbano) tornaram-se alvos indiscriminados. A isto chamaram Doutrina Dahiya.

Na Segunda Guerra do Líbano, em 2006, Israel destruiu por completo o bairro de Dahiya, em Beirute, na sequência de ataques do Hezbollah. Centenas de civis foram mortos. A doutrina ganhou-lhe o nome, uma homenagem macabra. Só se soube da sua existência na sequência de documentos do Departamento de Estado norte-americano divulgados pelo Wikileaks.

Ele [o então major-general Gadi Eisenkot, comandante do Comando do Norte das IDF] argumentou que a Segunda Guerra do Líbano foi permitida continuar por demasiado tempo. A próxima guerra – se uma estalar – ‘deverá ser decidida depressa e de forma poderosa, sem ceder à opinião pública mundial”, lê-se no memorando revelado pela organização de Julian Assange, encarcerado por denunciar crimes de guerra dos Estados Unidos. “Ele disse que Israel usará força desproporcional contra qualquer vila que dispare contra Israel, ‘causando grandes danos e destruição’. Eisenkot deixou-o bastante claro: isto não é uma recomendação, mas um plano já aprovado – da perspetiva israelita, não há vilas civis, elas são bases militares.”

Gaza é, então, uma enorme base militar em que tudo é um alvo. Foi em 2008, em 2012, em 2014 e em 2019. O Estado de Israel mostra-nos novamente que assim o é há mais de 30 dias: não há bairro, escola, hospital, mesquita, igreja que não seja encarada como base do Hamas. Os seus militares até fazem vídeos 3D para nos ajudarem a compreendê-lo. Mas mais do que combater o Hamas, o grande objetivo é outro, como já dito por vários ministros israelitas de extrema-direita: expulsar os palestinianos da Faixa de Gaza, para que o território possa ser depois anexado por Israel e seus colonatos. Uma nova nakba.

Se a guerra do Golfo de 1991 foi a primeira a ser transmitida em direto, o que estamos hoje a ver em Gaza é a primeira limpeza étnica e genocídio transmitido nas redes sociais. E não há raiva nem revolta suficientes para tanto sofrimento.

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