The Pitfalls of Growth Under Unrestricted Trade |
É claro que pode haver demasiados alfinetes de segurança e poucas lâminas, mas, para além destas micro desigualdades, nunca poderia haver uma procura insuficiente da produção agregada no seu conjunto. Esta afirmação, que em economia se designa por “Lei de Say”, é obviamente absurda, pois se fosse verdadeira nunca poderia haver uma crise de sobreprodução. Marx havia criticado a lei de Say e, nos anos 30, J. M. Keynes e Michal Kalecki, separadamente e quase em simultâneo, também demonstraram a sua fraqueza lógica. A economia burguesa, no entanto, não querendo admitir quaisquer falhas no funcionamento do capitalismo, tem procurado assiduamente restabelecer a Lei de Say através de todo o tipo de estratagemas teóricos duvidosos e sem qualquer mérito científico.
A razão para recordar tudo isto aqui é que todos os argumentos a favor do livre comércio assumem a validade da Lei de Say. De fato, ao assumir a Lei de Say implicitamente, se não explicitamente, o argumento do “livre comércio” assume que todas as economias experimentam o pleno emprego tanto antes como depois do comércio; tudo o que o comércio faz é manter todos os recursos plenamente empregados em todos os países, aumentando a produção mundial total (uma vez que cada país se especializa numa esfera em que tem uma “vantagem comparativa”), pelo que se seguria que o comércio livre seria benéfico para todos os países.
Mas esta proposição é obviamente inválida, entre outras razões porque a Lei de Say é inválida. Os países capitalistas geralmente não utilizam plenamente os recursos, devido a uma escassez de procura interna; e isto certamente é verdade para a economia mundial no seu conjunto. Se a economia mundial em geral é limitada pela procura, segue-se que se uma economia aumenta o seu nível de produção e emprego através do comércio, então algum outro país deve estar a assistir a uma redução da sua produção e emprego, como contrapartida deste aumento pelo primeiro país. Daqui resulta que o comércio livre, em vez de ser benéfico para todos, implica uma “corrida destrutiva” ("rat race")entre países, em que cada um tenta vender à custa do outro.
A estratégia de crescimento que o neoliberalismo implica é, portanto, fundamentalmente inaceitável do ponto de vista ético; obriga os países do terceiro mundo a lutarem uns contra os outros, o que é essencialmente uma estratégia burguesa. Tal como o capitalismo obriga os trabalhadores a competirem uns contra os outros (até se organizarem em sindicatos contra a vontade dos capitalistas, e mesmo assim a competição entre empregados e desempregados nunca cessa), também o capitalismo neoliberal obriga os países do terceiro mundo a competirem uns contra os outros. Para países que desenvolveram um sentido de unidade e solidariedade durante as respectivas lutas anticoloniais, e que ainda hoje precisam de manter a solidariedade entre si para enfrentar o imperialismo – para além do facto fundamental de que a humanidade precisa mais de cooperação do que de competição para a sua sobrevivência e florescimento – esta pressão exercida pelo capitalismo neoliberal na direção oposta é eticamente censurável.
Há uma razão adicional para que a estratégia de crescimento baseada no comércio livre ou sem restrições se torne eticamente condenável. Sabemos, pela nossa experiência do neoliberalismo, que a eliminação das restrições ao comércio está necessariamente associada à eliminação das restrições aos fluxos de capitais; caso contrário, o financiamento dos défices das contas correntes tornar-se-á impossível para muitos países. Mas esta remoção torna o país aberto ao vórtice dos fluxos financeiros globais e, consequentemente, enfraquece o seu Estado, tornando-o totalmente incapaz de intervir para aumentar o nível de emprego e de produção.
O nível de vida das pessoas torna-se, portanto, dependente de forças impessoais fora do seu controlo, que determinam, no conjunto, o nível da procura mundial. A promessa da luta anticolonial era que, após a descolonização, as pessoas controlariam o seu próprio destino económico através de um governo democraticamente eleito que reflectiria os seus desejos. Mas se a economia é governada impessoalmente pelas suas próprias tendências imanentes, e se as pessoas não podem afetar as suas vidas económicas através de políticas sobre as quais tenham algum controlo, então isso constitui uma continuação da sua falta de liberdade como nos tempos coloniais. Além disso, todo este arranjo reduz as pessoas ao estatuto de meros “objectos” à mercê dos mercados, em vez de “sujeitos” que controlam os seus próprios destinos, o que, por si só, é altamente censurável do ponto de vista ético.
Mas a invalidade da Lei de Say significa ainda mais. Mesmo ao nível económico, pondo de lado todas as objeções éticas, uma estratégia de crescimento baseada no comércio sem restrições é nitidamente inferior a uma estratégia baseada na expansão do mercado interno. Se a economia mundial é limitada pela procura, isso deve-se ao facto de as economias individuais dentro dela (não necessariamente todas) serem limitadas pela procura; e é geralmente o caso que o terceiro mundo como um todo é constrangido por uma inadequação da procura agregada dentro de uma distribuição (dispensation) neoliberal. Em consequência, a intervenção do Estado no aumento da procura agregada pode melhorar a situação do Terceiro Mundo no seu conjunto, no sentido de um perfil temporal mais elevado do emprego e da produção do que numa trajetória de crescimento caracterizada pelo comércio sem restrições.
Neste contexto, são necessárias três advertências. Em primeiro lugar, falámos do terceiro mundo como um todo; sem dúvida que dentro do terceiro mundo pode haver países que são tão bem sucedidos no seu esforço de exportação e, por conseguinte, o perfil temporal do seu emprego e produção já é tão elevado que não há mais margem para o Estado aumentar a procura agregada dentro deles sem causar inflação. Mas o seu êxito não deve esconder o fracasso dos outros; e também não pode ser replicado no resto do terceiro mundo, como a economia burguesa invariavelmente pretende, tal como o prémio de uma pessoa numa lotaria não pode ser replicado por todas as pessoas que nela participam.
Em segundo lugar, estas “histórias de sucesso” no terceiro mundo são tipicamente o resultado da intervenção do Estado, não para aumentar a procura agregada, mas para aumentar o desempenho das exportações. A partir daqui, muitos argumentaram que os Estados do terceiro mundo deveriam intervir para aumentar o desempenho das suas economias em termos de exportações, em vez de simplesmente deixarem as coisas ao sabor do “livre comércio”. Por outras palavras, defendem não uma estratégia neoliberal, mas sim uma estratégia neo-mercantilista. Mas, como a economia mundial tem uma procura limitada, mesmo que um país consiga aumentar as suas exportações através de uma estratégia neo-mercantilista, isso é necessariamente conseguido à custa de outro país. Por conseguinte, mesmo este conselho ao terceiro mundo é eticamente censurável e economicamente impossível de concretizar por todos eles em conjunto.
Em terceiro lugar, muitos países do terceiro mundo têm produções muito abaixo do seu potencial, se todos os recursos fossem utilizados; mas, no seu caso, se o Estado interviesse para aumentar o nível da procura agregada e, por conseguinte, o nível de emprego e de produção, haveria uma escassez de divisas externas. Parece, portanto, que não há alternativa à estratégia de aumento das exportações; o simples aumento da procura interna não é suficiente. O meio típico de aumentar as exportações num contexto neoliberal é através de uma depreciação da taxa de câmbio. Mas uma depreciação da taxa de câmbio aumenta os preços internos dos factores de produção importados, incluindo factores de produção essenciais como o petróleo; e se estes aumentos forem “passados” para o preço final, então haverá inflação; o que acontece tipicamente no neoliberalismo é que a inflação é controlada mesmo face a uma depreciação da taxa de câmbio, pela redução da taxa de salário monetário dos trabalhadores (ou impedindo o seu aumento em conjunto com a produtividade do trabalho). Mas atacar os trabalhadores não é apenas inaceitável; é também desnecessário se o Estado conseguir impor controlos à importação de uma série de bens de consumo de luxo que são consumidos pelos ricos.
Portanto é perfeitamente possível aumentar o emprego e a produção fazendo com que o Estado intervenha para aumentar a procura agregada a nível interno e para superar qualquer escassez de divisas que possa surgir no processo através da imposição de controlos comerciais (além, claro, dos controlos de capitais). Está lógica pode ser executada mesmo no caso de países pelo fardo da dívida externa. Eles têm de dar prioridade a certas dívidas em detrimento de outras e, ao invés de tentarem chegar a um acordo geral de alívio com todos os credores, têm de pagar primeiro alguns antes de outros.
Esta estratégia de olhar “para dentro” teria, no entanto, a oposição do capital financeiro globalizado e das potências dominantes que o apoiam. Mas já vimos que toda a sua “teoria” e os conselhos aparentemente benignos que dão com base nessa “teoria” são completamente falhados, porque a economia mundial não é o que eles imaginam. A lei de Say não se aplica e a economia mundial é limitada pela procura. A prioridade de todos os Estados do terceiro mundo, isoladamente ou em colaboração, deve ser a de ultrapassar esta limitação da procura, de modo a aumentar o emprego e a produção, racionando simultaneamente a utilização de divisas.
Prabhat Patnaik é um economista e comentarista político indiano.
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