segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Os “milagres” transitórios: Bangladesh do “milagre” económico a crise económica... do autoritarismo a convulsão politica

The Transient “Miracles”
Grande parte da análise da recente convulsão política no Bangladesh centrou-se na arbitrariedade e no autoritarismo do Governo de Sheikh Hasina, mas não se apercebeu, ou subestimou, a mudança ocorrida na situação económica do país. 
Um país que era aclamado como um “milagre” económico há apenas alguns meses está agora mergulhado numa crise económica que agravou subitamente as condições de vida de um grande número de pessoas. Foi este agravamento que esteve na base do notável aumento da impopularidade do governo de Sheikh Hasina. O governo foi responsabilizado por este fenómeno e a raiva reprimida contra ele traduziu-se em protestos de rua.

Até 2021, o Bangladesh foi considerado uma história de sucesso de crescimento impulsionado pelas exportações num contexto neoliberal. Cerca de 80% das suas exportações consistiam em vestuário e o crescimento das suas exportações de vestuário foi tão rápido que se chegou a sugerir que, dentro de muito pouco tempo, Bangladesh seria responsavel por até 10% da procura mundial de vestuário. As instituições de Bretton Woods aplaudiam o Bangladesh por ter retirado “milhões de pessoas da pobreza” e, mesmo em 2 de abril de 2024, um relatório do Banco Mundial previa que o crescimento do PIB do Bangladesh no ano fiscal de 2024-25 seria de 5,6%, o que, segundo qualquer critério, é um valor respeitável.

A deterioração da situação económica do Bangladesh ocorreu quando as exportações de vestuário foram atingidas pela pandemia; esta situação deveria ser temporária (daí a previsão otimista do Banco Mundial para 2024-25), mas acabou por ser mais duradoura, o que não é surpreendente, dada a persistente estagnação da economia mundial. Ao mesmo tempo, as remessas dos bangladeshianos no estrangeiro, outra fonte importante de divisas para o país, também sofreram um golpe, sem dúvida pela mesma razão. E, uma vez que Bangladesh depende de combustível importado, incluindo para a produção de eletricidade, o aumento dos preços do combustível importado após o início da guerra russo-ucraniana contribuiu para uma grave escassez de divisas, deu origem a cortes de energia prolongados e causou também um aumento do preço da energia que teve um efeito de pressão dos custos na economia em geral.

Dois outros factores contribuíram para a aceleração da inflação que, em agosto, atingiu 9,52%, o valor mais elevado de uma década, mas ainda considerado por muitos como uma subestimação: o primeiro é uma depreciação da taxa de câmbio em relação ao dólar, a qual é um produto tanto do fortalecimento do dólar devido ao aumento da taxa de juro nos EUA como parte do seu pacote de medidas anti-inflacionistas – e ainda dos problemas cambiais enfrentados pelo Bangladesh por sua própria conta. O segundo é a crescente compressão fiscal que o governo é obrigado a aplicar num contexto neoliberal devido ao abrandamento da economia; isto exclui qualquer tentativa de proteger a população dos efeitos da inflação, pois todas essas tentativas exigem um aumento dos subsídios.
Se o abrandamento do crescimento das exportações e das remessas, juntamente com os seus efeitos multiplicadores, é responsável pelo desemprego crescente que aflige atualmente o Bangladesh, o efeito de pressão dos custos decorrente do aumento do preço mundial do petróleo e da depreciação da taxa de câmbio é responsável pela aceleração da inflação que o país enfrenta simultaneamente. Um aumento do salário mínimo, como forma de compensar os trabalhadores face à inflação, também está fora de questão no contexto neoliberal, pois isso tornaria ainda mais difícil a manutenção dos atuais mercados de exportação. E se esse aumento do salário mínimo for acompanhado de uma nova depreciação da taxa de câmbio, a fim de evitar que esse aumento afete negativamente as exportações, isso só agravaria ainda mais o problema, aumentando ainda mais os preços dos combustíveis importados e provocando um novo impulso inflacionista generalizado.

Em meio a toda esta situação, o Bangladesh pediu empréstimos ao FMI e a outros credores internacionais, mas os empréstimos que obteve tornaram a balança de pagamentos ainda mais precária, aumentando o peso do serviço da dívida; e mesmo a limitada margem de manobra de que o governo dispunha perdeu-se devido ao controlo das suas políticas pelo FMI. Além disso, a imposição de “austeridade” pelo FMI agravou ainda mais a situação do desemprego.
Mesmo aqueles que reconhecem a importância da crise económica para o enfraquecimento do regime de Sheikh Hasina e para a criação de condições para uma mudança política, atribuem o agravamento do cenário económico, em grande parte, ao “clientelismo” (cronyism) desenfreado do seu regime. Do mesmo modo, a oposição à política de “reservas” de emprego para os descendentes dos combatentes da liberdade é tipicamente interpretada como hostilidade ao “clientelismo” do regime. Mas toda esta linha de raciocínio escamoteia o verdadeiro problema. A oposição às “reservas” tornou-se tão pronunciada devido à magnitude da crise do desemprego no Bangladesh; e a crise da economia estava enraizada na própria estratégia de crescimento liderado pelas exportações num contexto neoliberal. Em suma, não é o “clientelismo” em si, mas a própria estratégia que está na origem da crise económica.

Mesmo quando esta estratégia produz resultados dramaticamente bem sucedidos durante algum tempo, qualquer abrandamento da economia mundial que afecte o desempenho das exportações, ou qualquer outro desenvolvimento adverso na frente externa, empurra a economia para uma crise que inverte grande parte das realizações do seu período de êxito. De facto, as duas lições mais importantes a retirar da evolução do Bangladesh são: em primeiro lugar, a rapidez com que um país do terceiro mundo pode passar de “bem sucedido” a “fracassado”; e, em segundo lugar, a acumulação de dificuldades, ou o facto de as dificuldades inicialmente enfrentadas pelo país numa determinada frente poderem gerar dificuldades em várias outras frentes.

Alguns diriam que o problema do Bangladesh residiu no facto de ter posto todos os ovos no mesmo cesto, no facto de ter confiado quase exclusivamente nas exportações de vestuário, em vez de ter um conjunto diversificado de exportações; outros sugeririam que o Bangladesh deveria ter utilizado o seu êxito nas exportações de vestuário para diversificar a sua economia, desenvolvendo toda uma gama de indústrias que satisfizessem o mercado interno. Estas críticas, no entanto, não são pertinentes: numa economia neoliberal, o Estado não tem capacidade para intervir; não pode promover a industrialização interna sem um certo grau de proteção do mercado interno, mas essa proteção é desaprovada pelo capital internacional, cujo apoio é necessário para o êxito das exportações. Do mesmo modo, a questão de saber quais as exportações que terão sucesso no mercado internacional é decidida pelo capital internacional e não pelo Estado do país. Por conseguinte, culpar o Estado pelas armadilhas do crescimento orientado para a exportação sob o neoliberalismo é totalmente injustificado.
Independentemente das intenções de Muhammad Yunus e dos estudantes, se a Liga Awami não for autorizada a concorrer às eleições que se vão realizar os partidos de direita emergirão como os principais beneficiários da convulsão política; o Bangladesh será então empurrado para a direita, para gáudio do imperialismo e da oligarquia empresarial nacional. Isto ilustra, de facto, o novo cenário que se está a desenrolar por todo o mundo. 
Devido à crise capitalista mundial, muitos países do terceiro mundo que seguem políticas neoliberais estão a ser empurrados para a estagnação económica, o desemprego agudo e o aumento da dívida externa, o que vai tornar impopulares os regimes centristas que mantêm um certo grau de autonomia em relação ao imperialismo; mas isto cria as condições para que os regimes de direita apoiados pelo imperialismo derrubem esses regimes centristas e cheguem ao poder. 
Estes novos regimes não seriam menos autoritários do que aqueles que suplantam; mas, enquanto prosseguem o neoliberalismo e seguem a linha imperialista, desviam a atenção do povo através da religiosidade ou da “alteridade” (othering) de algum infeliz grupo minoritário. Isto constitui a estratégia “cara ganho eu, coroa perdes tu” do imperialismo, a qual assegura que as misérias que a crise do neoliberalismo inflige ao povo não conduzam a uma transcendência do neoliberalismo, mas à sua consolidação sob um regime de direita ou neofascista. O pesadêlo do neoliberalismo é portanto difícil de abandonar, mesmo quando a sua opressão é palpável.

A transcendência do neoliberalismo exige a mobilização das pessoas em torno de uma estratégia económica alternativa que atribua um papel mais importante ao Estado, se concentre no mercado interno e no controlo nacional dos recursos minerais e outros recursos naturais. O Bangladesh não é um país pequeno que possa ser pressionado a seguir uma estratégia de crescimento orientada para a exportação no quadro de uma orientação neoliberal; um país de 170 milhões de habitantes não pode, de modo algum, ser considerado “pequeno”. É certo que a prossecução de uma estratégia de desenvolvimento baseada no mercado interno não é fácil. Mas, para o terceiro mundo que está agora a enfrentar as consequências da crise capitalista mundial, não há outra alternativa.


Prabhat Patnaik é um economista marxista e comentarista político indiano.

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