O Fantasma da Cuca e as Lições Mal Aprendidas da Ditadura
Entre as muitas heranças deixadas pela ditadura militar no Brasil, poucas podem ser consideradas úteis. Uma delas, talvez a única, é a noção de que o exercício do voto é condição mínima para a cidadania. No entanto, outras “lições” — como o slogan “Brasil: ame-o ou deixe-o” — foram repetidas à exaustão, como mantras de uma seita autoritária, e ainda hoje ecoam em parte da sociedade. O mais alarmante é perceber que, mesmo décadas depois, essas ideias continuam influenciando gerações que sequer viveram aquele período.
A Doutrinação do Medo
A ditadura soube manipular o medo como ferramenta de controle. Criou-se a figura de uma “Cuca” urbana — uma ameaça invisível, mas sempre presente, que justificava a repressão e o autoritarismo. Essa Cuca, no imaginário da época, era o comunismo. E, como toda boa fábula de terror, ela servia para assustar tanto o banqueiro quanto o trabalhador endividado. O medo era universal, mas os interesses por trás dele, nem tanto.
Essa pedagogia do medo não foi neutra. Ela moldou comportamentos, silenciou vozes e, sobretudo, ensinou a população a desconfiar da liberdade. O resultado? Uma sociedade que, em pleno século XXI, ainda clama por “intervenções” e “ordem”, mesmo que isso signifique abrir mão da própria democracia.
A Caça e o Caçador
A lógica imposta pela ditadura era simples: o caçador (o Estado autoritário) precisava de liberdade para caçar, e a caça (o povo) deveria aceitar seu papel com resignação. Questionar essa lógica era visto como traição. E aqueles que ousaram fazê-lo — como Paulo Freire — foram perseguidos, exilados e, posteriormente, ridicularizados por aqueles que absorveram sem crítica os dogmas do regime.
Freire, com sua pedagogia libertadora, propunha justamente o contrário: que o oprimido tomasse consciência de sua condição e se tornasse sujeito de sua própria história. Não por acaso, ele foi um dos alvos preferenciais da ditadura e continua sendo atacado por seus herdeiros ideológicos.
As Contradições do Presente
Hoje, vemos cristãos defendendo com fervor políticas e figuras que exaltam a tortura — a mesma tortura que vitimou o Cristo que dizem seguir. Vemos bandeiras estrangeiras tremulando em manifestações no Dia da Pátria. Vemos a destruição ambiental sendo normalizada em nome do “progresso”. Tudo isso são sintomas de uma sociedade que aprendeu as lições erradas — ou que, pior ainda, não aprendeu lição alguma.
Conclusão
É urgente resgatar uma leitura crítica e freireana da realidade. Precisamos lembrar que Paulo Freire, assim como tantos outros, foi vítima de um regime que tentou apagar o pensamento crítico do país. E isso não foi por acaso. Foi estratégia.
Revisitar essas memórias não é revanchismo — é responsabilidade histórica. Só assim poderemos romper com os fantasmas do passado e construir uma cidadania verdadeiramente consciente, plural e democrática.
ERRATA: na crônica de N. 2030, quando escrevemos sobre a revolução federalista em Santa Catarina, falamos que a matança dos nativos teria ocorrido em 1884 , quando aconteceu em 1894. Desculpem-nos.

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