sábado, 24 de junho de 2023

Gabriela Prioli tem muito a aprender com Marilena Chauí

Um debate sobre festa de São João, que poderia ser mais interessante do que pitoresco, oportuniza revisitar Marilena Chauí e entender porque nossa classe media confunde popular com popularidade e defende cultura de massa na lógica de cultura do povo.


Segundo Chauí, quando se diz cultura popular, se quer dizer que tal cultura está no povo, mas não foi necessariamente produzida pelo povo; e, quando se diz cultura do povo, se quer dizer que é do povo e também foi produzida por ele.

Durante o Saia Justa, Astrid Fontenelle e Gabriela Prioli debateram sobre as tradições de São João. A jornalista defendeu a festa tradicional, enquanto a advogada se posicionou pela evolução dos costumes.

O papo seguiu conforme abaixo:

“Vou pra São João pra dançar um forró, comer o amendoim cozido, cheguei lá, era uma festa de axé. Não, não dá. Eu acho que não dá pelo Brasil, não pelo meu gosto. É uma festa de São João!”, começou Astrid. Em seguida, Prioli deu seu ponto de vista sobre a festividade: “Não dá pra você. Parte de um juízo subjetivo seu. O que você estava esperando era chegar lá e encontrar outra coisa. […] Acho que o que vale a pena pensar primeiro é o que é o São João tradicional? Então, qual é o marco temporal que a gente vai estabelecer pra dizer o que é São João?”, questionou e foi ai que o bate boca esquentou.

“A gente talvez tenha um marco temporal pelos livros de História, mas, pra mim, tradição não é só o livro de História, tradição é prática, o que ele se tornou quando chegou aqui no Brasil”, opinou Astrid, que foi interrompida por Gabriela: “Você diz ‘pra mim é’… A morte do meu mundo não é a morte do mundo”, opinou. Astrid ficou visivelmente irritada e rebateu: “Não tenho problema em dizer ‘pra mim é’, porque eu estou dando a minha opinião e a minha opinião não é a de todo mundo, mas é opinião de muita gente que quer manter a tradição, e não quer perder essa parte da História, sobretudo nordestina, tão forte, tão bonita, que movimenta realmente muita coisa”, afirmou.

Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil  Marilena Chauí - Resenhista: Darcilene Sena Rezende – Mestranda em História (FFLCH/USP); bolsista FAPESP.


Marilena Chauí escreveu esse livro em 1985. Inicialmente objetivou um público estrangeiro, por isso no Brasil só publicou no ano seguinte. O Livro focaliza a Cultura Popular no Brasil, procurando defini-la e compreender sua dinâmica.
Em um primeiro momento, Chauí aborda as dificuldades de definição da expressão Cultura Popular, discutindo o conceito de “cultura”, procurando precisar o conceito de “popular”, sobretudo em suas formas predominantes no Brasil, originadas nos pontos de vista “romântico” e “ilustrado”. Contrapondo-se à identificação entre “Cultura de Massa” e “Cultura Popular” – encontrada tanto entre os “liberais” norte-americanos das décadas de 50 e 60, quanto entre os frankfurtianos -, Marilena propõe distinguí-las, relacionando Cultura de Massa à classe dominante (que a elabora e impõe) e Cultura Popular à classe dominada. Analisa o comportamento da segunda diante da primeira, em termos de estratégias de aceitação e recusa; assim, enfatiza “a dimensão cultural popular como prática local e temporalmente determinada, como atividade dispersa no interior da cultura dominante, como mescla de conformismo e resistência”. (p.43)

Provavelmente mais dirigida ao leitor estrangeiro, a segunda parte do livro busca demonstrar que, a despeito do regime ditatorial vivido por nosso país após 64, não é apenas o Estado brasileiro que é autoritário, mas a própria sociedade civil, estruturada sobre relações de favor, tutela e dependência. Chauí procura mostrar como, ao longo do período de Governo Militar, as classes dominadas brasileiras estiveram lutando para “conquistar o próprio direito à cidadania e constituir-se como sujeito social”. (p.62) A autora apresenta várias experiências e estudos como exemplos de atitudes de “resistência” cultural popular (o projeto SACI/EXERN, a criação do “pedaço”, a religiosidade popular e outros).

A terceira parte do livro se inicia com a demonstração de como, em busca de controlar a cultura popular – não apenas em seus produtos acabados (tradições, folclore), mas desde seus processos criativos coletivos -, o Estado brasileiro procura transformar o “popular” em “nacional”, vendo este como o “típico”. Frente à retomada das questões sobre a construção da identidade cultural e da identidade nacional, papel freqüentemente atribuído ao Estado, Chauí analisa elementos para essa discussão através da observação da relação do “popular” brasileiro com o que ela chama de “mitologia verde-amarela”. Parte então para uma interessantíssima abordagem das dificuldades conceituais em torno dos termos “Nacional” e “Popular”, considerados, muitas vezes, faces (interna e externa) da mesma unidade: o Estado nacional. Na perspectiva da autora, entretanto, Nacional e Popular implicam em espaços distintos: “o Nacional reenvia à Nação como unidade, mas o Popular reenvia à sociedade e à divisão social das classes (…)”.(p.107) Encerra considerando que nossa sociedade se recusa “a refletir sobre suas divisões originárias” e procura dissimulá-las; tomando de um conceito de história como continuidade, sucessão e progresso, a sociedade identifica a Cultura Popular com o passado, do qual é guardiã, definindo a Cultura Instruída como responsável pelo futuro, pela evolução e pelo progresso.

Conformismo e Resistência, título do livro, é também título da quarta e última parte, uma vez que Marilena vai considerar estes dois termos como base da relação entre Cultura Popular e Cultura dominante. Chauí defende a validade de encarar a Cultura Popular como ambígua, no sentido de que não é composta de partes separáveis e identificáveis, mas de “dimensões simultâneas”. A autora é muito feliz ao afirmar que: “Ora, seres e objetos culturais nunca são dados, são postos por práticas sociais e históricas determinadas, por formas de sociabilidade, da relação intersubjetiva, grupal, de classe, da relação com o visível e o invisível, com o tempo e o espaço, com o possível e o impossível, com o necessário e o contingente.” (p.122) Assim, considera o popular em suas ambigüidades, como “tecido de ignorância e de saber, de atraso e de desejo de emancipação, capaz de conformismo ao resistir, capaz de resistência ao se conformar.” (p.124) Por fim, a partir do episódio da frustrada campanha eleitoral de Lula – candidato do Partido dos Trabalhadores ao governo do Estado de São Paulo em 1982 – a autora analisa como se apresentaram, entre os trabalhadores que não votaram naquele que deveria ser seu representante mais claro, duas problemáticas: a questão da “instrução” e da “competência”; a concepção de política e a noção de governo.

O livro, de leitura fácil e agradável, apesar da densa abordagem conceitual que apresenta, é uma obra que merece ser lida por todos os interessados em trabalhar o “popular” e/ou o “nacional”. Entretanto, é preciso olhar com cuidado certas afirmações e conclusões de Marilena, em função, talvez, de sua forte formação marxista e sua militância política, que levam-na a adotar alguns pressupostos teórico-metodológicos que ela mesma contradiz em suas reflexões teóricas.

Procurando distanciar-se de um conceito de “cultura popular” como outra cultura à parte, como uma “totalidade orgânica, fechada sobre si mesma” (p.24), paralela à cultura letrada, e preocupada em trabalhar “as diferenças culturais postas pelo movimento histórico social de uma sociedade de classes” (p.24), Marilena Chauí opta por uma definição de Cultura Popular como elemento que age no interior da cultura dominante, aceitando-a ou não. Isso significa que, por motivos ideológicos, a autora acaba por centrar sua análise nas manifestações que existem em função da cultura dominante, seja assimilando-a (atitude conformista) ou reapropriando-se dela, transformando-a, deslocando-a, recusando-a (atitudes de resistência), em uma ótica predominantemente política do comportamento humano. Assim, ela age como se a camada “popular” não criasse ou experimentasse nada independente da “cultura dominante”, como se suas práticas e vivências culturais surgissem necessariamente destas relações de conformismo e/ou resistência, sem considerar outras relações possíveis como alheamento, ou troca, ou influência do “popular” sobre o “dominante”. Quando fala da reapropriação e transformação do “popular” pelo “dominante”, é no sentido do esvaziamento de seu sentido e manipulação deliberada pelo poder para manutenção da “dominação”, através das “políticas culturais”.

Apesar de criticar, em alguns momentos, o marxismo “ortodoxo” e a atitude das vanguardas de esquerda em décadas passadas, Marilena se mantém presa a um esquema de luta de classes em que prevalece a oposição – maniquísta e maquiavélica [1] – entre dominantes e dominados, como categorias generalizantes, ocultando as heterogeneidades internas. Quando aborda a tentativa de imposição cultural pelo Estado, e as formas que a população em geral encontra para reelaborar esta cultura, a postura da autora é mais pertinente. Entretanto, é temerária a generalização e a dicotomia estabelecida por ela, supondo esse processo como embate entre “Cultura de Massa” e “Cultura Popular”. Esta escolha de Chauí se aproxima de uma vertente da “história social do trabalho” que vê todo o universo dentro de uma perspectiva de luta de classes ampliada, onde, portanto, toda expressão dos “dominados” se dá em função da relação de subordinação ou resistência aos “dominantes”. Nestes termos, ela exagera, interpretando as experiências estudadas de modo a encontrar essa resistência em toda e qualquer atitude, até na relação entre a torcida e o futebol, na pintura da casa popular com cores alegres, ou mesmo no fato de mobiliar a casa e pendurar quadros nas paredes.

O próprio Gramsci, citado em certa altura, em busca de instrumental teórico para pensar a complexidade das realidades encontradas, já trabalhava com o conceito mais amplo – emprestado da geologia – de estratificação social, no sentido de considerar a multiplicidade de atores sociais em combinações variadas de situações, além de levar em conta a interpenetração das camadas sociais, a inexistência de fronteiras rígidas.

O problema de uma certa leitura de Gramsci é pensar, também, a elaboração da cultura na classe dominante, penetrando por “deslizamentos” irregulares nas camadas inferiores, portanto vendo o movimento em um só sentido. Na busca da criação de um espaço de contra-dominação propõe-se a elaboração, por intelectuais orgânicos, de uma cultura alternativa enraizada na cultura inerente à classe operária, que representaria uma radical ruptura. Esta seguiria o sentido inverso, entrando em choque com a cultura dominante. A postura adotada por Chauí se aproxima desta visão, ignorando discussões – já não tão recentes – sobre noções como, por exemplo, “circularidade de culturas” (Bakthin), que colocariam a questão das diferentes culturas dentro de uma sociedade não no campo de embates, mas de constantes e sutis trocas, com movimentos em todos os sentidos.

Para Marilena, as manifestações populares oferecem uma espécie de resistência, sem “refutação” ou “combate aberto”, que “opera no interior da mitologia sem destruí-la, mas revelando suas ilusões”, devolvendo seu “avesso aos dominantes” (p.100) Ao mesmo tempo, “permanecendo no interior do campo simbólico definido pelos dominantes, a manifestação popular aceita, implicitamente, a hegemonia existente.” (p.104) Ou seja, parece não haver acaso, toda atitude implica em um certo nível de escolha (aceitar ou resistir implicam uma opção), ainda que inconsciente.

No Brasil, nas formulações ideológicas românticas e populistas, “Nação e Povo funcionam como arquétipos ou como entes simbólicos saturados de um sentido que se materializa ou se manifesta em casos particulares, empíricos, tidos como expressões concretas de símbolos gerais. Encontramos o índio, o negro, o sertanejo (…)”. (p.117) Chauí também transforma o popular em arquétipo, com “expressões concretas” como os trabalhadores, os migrantes, a resistência, o conformismo etc. A autora critica a “vanguarda revolucionária” da década de 60 por sua atitude paternalista e autoritária, definindo “o que o povo é e como deve ser, o que deve fazer e o que deve pensar para que se cumpram as ‘leis objetivas da história'”. (p.108) A despeito destas críticas, em determinados pontos, toma como “populares” certas opiniões, atitudes ou reivindicações que aparecem mais claramente como discurso ou orientação das vanguardas e dirigentes sindicais de esquerda. Atribui aos “trabalhadores” enquanto classe, “expressão concreta” do arquétipo “popular”, lutas por “liberdade e autonomia dos sindicatos”, “unificação nacional do salário mínimo”, “distribuição de terra aos sem terra e pelo direito à terra para os posseiros”, “formação de uma central única de trabalhadores” etc. (p.53)

Apesar de sua crítica ao olhar “purificador” do intelectualismo e do empirismo, Chauí transforma a sociedade, “purificada” ou simplificada por certo olhar, em “isto” ou “aquilo”, “dominantes” ou “dominados”. Contraditoriamente, argumenta e até cita trabalhos que poderiam ser lidos como uma crítica a seus próprios pressupostos, como, por exemplo, o de Maria Isaura de Queiros: “A dúvida aqui expressa para com a dicotomia ‘religião oficial’ e ‘religião popular’ se estende, na verdade, a toda utilização de conceitos dicotômicos em sociologia que parecem originar-se de um raciocínio sistemático e teórico, tendo como ponto de partida concepções ideológicas de bem e de mal e não uma consulta direta à realidade estudada; como resultado, em lugar de serem apropriadas à análise da realidade social, a deformam no sentido que convém melhor à ideologia do pesquisador'”. (p.123)

Chauí atribui ao “verde-amarelismo”, ao “populismo”, ao “autoritarismo” uma atitude “dicotômica diante do popular”. “Este é encarado ora como ignorância, ora como saber autêntico; ora como atraso, ora como fonte de emancipação. Talvez seja mais interessante considerá-lo ambíguo, tecido de ignorância e de saber, de atraso e de desejo de emancipação, capaz de conformismo ao resistir, capaz de resistência ao se conformar.” (p.124) No entanto, sua obra se baseia em uma dicotomia anterior, que contrapõe “cultura dominante” e “cultura popular”, além de reduzir a segunda à mera reação, ou, no máximo, reapropriação da primeira. Até na terminologia adotada, o referencial da autora comporta hierarquização e juízos de valor, por exemplo, na utilização do termo “atraso” cultural.

Marilena afirma que “Vivemos em sociedades que se recusam a refletir sobre suas divisões originárias e que dissimulam as divisões produzindo identidades e identificações imaginárias“. (p.119) Os raciocínios deste tipo não contemplam – talvez pela época em que o texto foi produzido – a tendência recente que é a busca e construção de identidade, não neste sentido macro e homogeneizante, mas, ao contrário, no sentido localizado, de cada grupo social. Grupos, etnias, minorias etc., procuram garantir a heterogeneidade, buscando seu espaço, suas especificidades, através de características, origem, percurso, identidade próprios, entre as múltiplas possíveis.

A utilização que a autora faz de trechos de depoimentos, aparecendo constantemente ao longo do livro como argumento e prova, pode ser considerada metodologicamente discutível. Os testemunhos apresentados são retirados de outras obras, sem que, em nenhum caso, sejam explicitados, por exemplo, o grupo escolhido para depor, as características, as principais influências a que está sujeito, os critérios de escolha, os critérios e estratégias de entrevista etc. Uma vez que Marilena não foi responsável pela elaboração destes documentos, torna-se ainda mais difícil avaliar o alcance ou as limitações impostas por esse tipo de fonte. Além disso, Chauí freqüentemente toma exemplos localizados para argumentar sobre o “popular” em geral. Os trabalhos e experiências que aborda visam argumentar sobre a natureza ambígua da cultura popular, misto de resistência e conformismo, portanto procura identificar essas duas atitudes em cada exemplo. Por vezes, valoriza experiências das quais não é possível estabelecer com clareza o alcance, ou quanto podem ser significativas. Marilena também se entusiasma, em alguns casos, exagerando o papel de determinados elementos, chegando a fornecer dados errôneos, como a menção de um suposto título nacional conquistado pelo Corinthians, durante o período da “democracia corinthiana”. (p.103)

Não é possível esquecer, durante a leitura, que o livro é de 85, momento em que ainda se partilhavam ilusões, alimentadas pelos movimentos ocorridos na década de 70 e princípio da de 80, de que no Brasil havia movimentos populares e sociais em luta pela “cidadania”, capazes de transformar radicalmente a sociedade. Antes mesmo de começar a Introdução, em uma Nota preliminar, Marilena Chauí afirma que: “Alguns leitores (…) consideraram este trabalho muito pessimista.”(p.18) Certamente os leitores citados, assim como a própria autora, falam do ponto de vista de quem teve uma formação essencialmente marxista. Após os acontecimentos nacionais e internacionais que tiveram lugar no final da década de 80 e princípio da atual, pode-se dizer que a obra de Chauí é até otimista, considerando sua visão da atuação e consciência social das classes desfavorecidas. Seria interessante uma revisão desta obra pela própria autora hoje, frente às modificações do quadro político mundial e após sua própria experiência de participação na estrutura estatal, sendo responsável pela elaboração de “políticas culturais”.


 

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