quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Teoria Monetária Moderna e a crise do capitalismo: Segunda Parte

 

Modern Monetary Theory and the crisis of capitalism: Part Two   

 por Nick Beams


Esta é a segunda parte de um artigo. A primeira parte está disponível aqui.

Historicamente, o ouro emergiu como a matéria-prima do dinheiro. Ao longo do século passado, o dinheiro fiduciário emitido pelo Estado substituiu o ouro no funcionamento diário da economia capitalista e, acima de tudo, de seu sistema financeiro e de crédito, particularmente após a remoção do lastro em ouro do dólar americano em agosto de 1971. Sob essas condições, se desenvolveu a concepção que o dinheiro é meramente uma convenção e deixou de ter uma base material.

Essa é a base da Teoria Monetária Moderna e da promoção de suas ilusões de que o capitalismo pode de alguma forma funcionar de acordo com a satisfação da necessidade social. “Livres das restrições que nos prendem em um mundo de padrão-ouro”, escreve Kelton, “os EUA agora desfrutam da flexibilidade para operar seu orçamento, não como uma família, mas para o verdadeiro serviço de seu povo”. [The Deficit Myth, p. 37]

Ela insiste que “merecemos saber a verdade” de que um governo emissor de moeda “pode se dar ao luxo de comprar o que estiver à venda em sua própria unidade monetária”, e que “os bolsos do Tio Sam nunca estão vazios”. [p. 256]

Ela até mesmo espera o apoio do ex-presidente do Fed, Alan Greenspan, citando o seu depoimento ao Congresso em 2005, no qual disse que não havia “nada que impedisse o governo federal de criar tanto dinheiro quanto ele quer e pagá-lo a alguém”. [p. 182]

É certamente verdade que o Fed pode emitir grandes quantidades de dinheiro sem limite. Mas ele não pode criar o valor que este dinheiro supostamente representa. Ele não pode determinar quanto desse dinheiro precisa ser usado para comprar mercadorias. Além disso, ao emitir dinheiro em papel, não pode expandir a massa de mais-valia adicional extraída da classe trabalhadora no processo de produção, que forma a base e a força motriz da economia capitalista.

Ou seja, ao separar o dinheiro do sistema de valor, a MMT simplesmente coloca de lado as relações sociais subjacentes da economia capitalista. O dinheiro pode ser criado em quantidades ilimitadas. Mas, no limite, seja na forma de ouro ou papel-moeda, ele deve funcionar como o representante material do valor.

Eventos recentes reforçam esse aspecto. A expansão maciça de dinheiro pelo Fed dos Estados Unidos desde o início da pandemia de COVID-19 desencadeou uma crise financeira, viu o valor do dólar cair drasticamente, enquanto o preço do ouro atingiu recordes em meio a preocupações sobre por quanto tempo o dólar pode continuar a funcionar como moeda mundial.


Ao abordar essa questão em um artigo no New York Times no auge da crise de março, o historiador econômico Adam Tooze observou que enquanto a economia americana era fraca, o dólar ainda era o meio de pagamento mais universalmente aceito e uma reserva de valor. Seu argumento era essencialmente circular: o dólar é aceito como meio de pagamento porque é uma reserva de valor e é uma reserva de valor porque é aceito como meio de pagamento.

É impossível dizer quanto tempo isso poderá durar e se a crise atual leva imediatamente a uma crise de confiança no dólar e em todas as moedas fiduciárias e a uma virada para o ouro. Mas há limites inerentes à criação de infinitas quantidades de dinheiro e crédito.

A produção capitalista, com o desenvolvimento do sistema de crédito, Marx observou, “esforça-se constantemente para superar esta barreira metálica, que é tanto uma barreira material quanto imaginária à riqueza, ao mesmo tempo em que volta sempre a bater a cabeça contra ela”.

O dinheiro em forma de metal precioso, insistiu ele, continua sendo a base a partir da qual o sistema de crédito “nunca poderá se libertar”. [Marx, Capital Volume III, p. 708, p. 741]

Keynes pode ter descartado o ouro como uma “relíquia bárbara”, mas os bancos centrais continuam a possuí-lo. O Bundesbank alemão, por exemplo, descreve o ouro como um “tipo de reserva de emergência que também pode ser usada em situações de crise quando as moedas estão sob pressão”, e o Banco da Inglaterra descreve-o como “a última reserva de valor, cobertura de inflação e meio de troca”.

Kelton sustenta que a análise da MMT é apartidária e seu poder explicativo “descreve como nosso sistema monetário realmente funciona”. Isso é falso porque deixa de fora as relações sociais e de classe nas quais a economia capitalista se baseia – a propriedade privada dos meios de produção, a produção de mercadorias para o mercado, a transformação da força de trabalho em mercadoria e a extração de mais-valia com base nessas relações sociais, que é a fonte da acumulação de capital.

Essa separação, que está no coração da teoria do dinheiro da MMT, torna-se ainda mais clara quando Kelton se volta para alguns dos principais problemas sociais e econômicos dos dias atuais e para as propostas apresentadas pela MMT para resolvê-los.

Uma de suas principais diretrizes políticas é a criação de empregos pelo governo federal. Isso significaria a garantia de emprego para todos que quisessem um emprego de US$ 15 por hora, que funcionaria como um estabilizador da economia em períodos de retração econômica. Quando ocorresse uma recuperação, o emprego federal seria reduzido à medida que os trabalhadores retornassem ao setor privado.

É desnecessário dizer que não há explicação para a existência do desemprego, sem mencionar as crises recorrentes e cada vez maiores do sistema capitalista que o produz. Mas a MMT propõe que as crises podem ao menos ser amenizadas através de projetos de trabalho financiados pelo Fed apertando um botão de computador para criar mais dinheiro.

A análise da MMT baseia-se na concepção de que a função da economia é atender às necessidades da sociedade através da produção de bens e serviços, enquanto fornece à população, através do sistema de salários, os recursos para comprá-los e se sustentar.

Essa é uma descrição completamente fictícia. A força motriz da economia capitalista não é a oferta de meios de vida. Sua base é a expansão de valor através da extração de valor excedente, ou mais-valia, do trabalho da classe trabalhadora.

A origem da mais-valia – a base, no limite, do lucro industrial, do aluguel, do pagamento de juros e do retorno ao ativo financeiro – é a diferença entre o valor da mercadoria força de trabalho, adquirida pelo capital através do pagamento de um salário, e o valor criado pelo trabalhador no decorrer do dia de trabalho.

O desemprego não surge de algum infeliz mau funcionamento da economia, mas é parte integrante do processo de acumulação de mais-valia.

Cada setor do capital está em constante luta para apropriar-se de sua parcela da mais-valia total extraída da classe trabalhadora reduzindo seus custos de produção. Uma das principais maneiras de se fazer isso é baixando os salários através da criação do que Marx chamou de “exército de reserva” de mão de obra – os desempregados.



Essa tendência se manifesta continuamente, sobretudo nos períodos supostamente melhores de expansão econômica. À medida que os salários aumentam sob condições de tal expansão, cada setor do capital é impulsionado pela luta competitiva para introduzir novas medidas para reduzir a força de trabalho e intensificar a exploração dos trabalhadores a fim de aumentar os lucros.

Os interesses da classe capitalista como um todo são garantidos pelo Fed, juntamente com outros bancos centrais, que elevam as taxas de juros para suprimir a produção econômica a fim de manter a pressão descendente sobre os salários. No início dos anos 1980, a chamada “reestruturação” da economia americana foi realizada pelo Fed sob a presidência de Paul Volcker, que elevou as taxas de juros a níveis recordes para fechar setores inteiros da indústria e criar desemprego em massa.

O desemprego não é uma característica infeliz ou acidental, mas é parte integrante de um sistema socioeconômico baseado na mercantilização da força de trabalho. Escrevendo contra os proudhonistas e seus “truques de circulação”, Marx observou: “Uma forma de trabalho assalariado pode corrigir os abusos de outra, mas nenhuma forma de trabalho assalariado pode corrigir o abuso do próprio trabalho assalariado”. [Grundrisse, p.123]

A mesma questão – o fato de a MMT passar por cima das relações sociais da economia capitalista – se coloca quando Kelton considera o oferecimento de saúde e outros serviços e infraestruturas sociais vitais.

Contrariando as contínuas alegações de que o Medicare é insustentável, ela escreve: “Todos esses argumentos são mal orientados porque todos estão fundamentados no mito do déficit. Enquanto tivermos prestadores e infraestruturas de saúde para atender à demanda, o Medicare será sustentável nos únicos termos que importam – os verdadeiros recursos produtivos de nossa nação”. [p. 173]

É perfeitamente verdade que todos os recursos existem não apenas para sustentar o Medicare, mas para expandi-lo, juntamente com muitos outros serviços sociais. Mas isso não acontece por causa das formas mal orientadas de pensar dos formuladores de políticas ou dos mitos que acreditam.

Isso acontece porque a estrutura da economia capitalista é baseada na acumulação de mais-valia. Os serviços sociais prestados pelo Estado não produzem mais-valia. Ao contrário, eles são financiados pela redução da massa total de mais-valia disponível para apropriação pelo capital. É por isso que toda crise econômica que ameaça a acumulação de lucro é acompanhada pelo impulso para cortar os serviços sociais.


Segundo Kelton, porém, esses ataques não estão enraizados em relações sociais e econômicas objetivas, mas surgem de formas de pensamento ultrapassadas, ou seja, que o governo deve equilibrar seu orçamento.

Como um pregador religioso, a MMT anuncia: “Eu sou a sabedoria e a luz. Abandonem seus velhos modos de pensar e a sociedade pode avançar se não para o céu, pelo menos para um lugar melhor”.

Kelton apresenta exemplos do que ela chama de “mito do déficit”, alguns deles decorrentes de sua participação na equipe econômica que assessorou o Senador Bernie Sanders em 2015.

Mas se, como afirma, a MMT é uma explicação de como o sistema monetário realmente funciona, então qual é a razão para a persistência da mitologia diante da perspectiva que a MMT oferece? Se um mito persiste, então ele deve ter raízes sociais objetivas. Ele deve servir a forças de classe definidas. Ele não pode ser atribuído à ignorância, assim como a persistência da religião não pode ser explicada.

Essa questão pode ser investigada e a razão dos ataques à saúde e outros serviços pode ser revelada considerando a situação que existiria se os formuladores de políticas fornecessem uma explicação objetiva para suas medidas.

O que aconteceria se eles dissessem ao Congresso que a razão pela qual os gastos com serviços sociais devem ser cortados e que não há “dinheiro” para financiá-los é que tais gastos são uma redução da mais-valia extraída da população trabalhadora necessária para manter e aumentar os lucros de Wall Street?


Se tal explicação científica, derivada do funcionamento real da economia capitalista, fosse apresentada em meio a crescentes tensões de classe, impulsionaria uma crise política que levaria ao crescimento do sentimento anticapitalista e socialista.

Não estamos de forma alguma sugerindo que os membros do Congresso estejam cientes do funcionamento real da economia capitalista, assim como Kelton não está. Mas o fato deles invocarem a necessidade do governo de cortar gastos a fim de equilibrar seu orçamento, como uma família, desempenha um papel político definido, que está enraizado na estrutura de classe do capitalismo. É a cobertura ideológica para os serviços que prestam a Wall Street.

A MMT desempenha seu papel encobrindo esse sistema ao desviar a atenção dos processos objetivos subjacentes no trabalho, e concentrando-se nas concepções dos políticos e dos formuladores de políticas.

Ela defende a perspectiva de que a ordem econômica e política capitalista, que permite o vasto acúmulo de riqueza nas mãos de uma oligarquia financeira à custa da sociedade, pode ser milagrosamente transformada para beneficiar o povo se apenas os formuladores de políticas puderem ver a luz que supostamente proporciona.

Na apresentação de Kelton, a MMT não só pode eliminar os conflitos de classe e as contradições dentro dos Estados Unidos, como é capaz de transformar o imperialismo americano de um poder predatório, voltando-se cada vez mais para o militarismo para manter seu domínio global e ameaçando desencadear outra guerra mundial, em um benfeitor para o povo do mundo.

É preciso reconhecer, escreve, “que o governo americano pode fornecer todos os dólares de que nosso setor privado doméstico precisa para atingir o pleno emprego, e pode fornecer todos os dólares que o resto do mundo precisa para construir suas reservas e proteger seus fluxos comerciais. Em vez de usar seu status hegemônico de moeda para mobilizar reservas de ouro atendendo a seus próprios limitados interesses, os EUA poderiam liderar o esforço para mobilizar recursos para um Green New Deal global, mantendo as taxas de juros baixas e estáveis para promover a tranquilidade econômica global”. [p. 151]


É dito que não há realmente nada de novo sob o sol, e a MMT, como defendida por Kelton, é muito vinho velho em garrafas novas. É a versão moderna das teorias que foram apresentadas em períodos anteriores de crise capitalista para desviar os trabalhadores das tarefas reais em jogo. Não surpreende que tenha sido aproveitada por setores da pseudoesquerda, como a deputada dos Socialistas Democráticos dos EUA (DSA) Alexandra Ocasio-Cortez, que afirma que a MMT deve “fazer parte de nossos debates”.

O caminho a seguir não é a falsa perspectiva de alguma reforma do sistema capitalista através de “truques de circulação”, mas sua derrubada pela classe trabalhadora para estabelecer um governo operário a fim de abrir caminho para o estabelecimento de uma economia socialista democraticamente controlada e organizada na qual as vastas forças produtivas são utilizadas para atender às necessidades humanas.

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