Nestes momentos... eu gostaria tanto de lhe transmitir esta chave mágica, para que você perceba sempre e em qualquer situação o lado bonito e alegre da vida
José Tolentino de Mendonça é um cardeal, poeta e teólogo português, nascido em Machico, Madeira, em 15 de Dezembro de 1965.
O cardeal Tolentino é professor universitário e recebeu em Junho de 2020 o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva, devido à "capacidade que demonstra ao divulgar a beleza e a poesia como parte do património cultural intangível da Europa e do mundo. E não é por menos também considerado como uma das vozes mais originais da literatura portuguesa contemporânea e reconhecido como um eminente intelectual católico. A sua obra inclui poesia, ensaios e peças de teatro assinados apenas como José Tolentino Mendonça.
Atualmente, ele é o responsável pelo Arquivo Apostólico do Vaticano e pela Biblioteca Apostólica Vaticana, na Cúria Romana. E assim sendo, está entre um dos mais respeitáveis interlocutores do Papa Francisco. Tolentino foi responsável por discutir em publico desde a igreja a espiritualidade deste mulher que é um ícone do pensamento libertário e libertador. Marxista, ateia, ela nos ensina espiritualidade, com qualificou o site Paz e Bem, na matéria que segue:
Este olhar resulta de um encontro improvável, entre ela e o arcebispo José Tolentino Mendonça, nomeado em junho de 2018 pelo Papa Francisco, depois de conduzir, de 18 a 23 de fevereiro, o retiro de Quaresma do Papa e dos membros da Cúria Romana. Como arcebispo, foi nomeado para os cargos de Arquivista e Bibliotecário da Santa Sé. Ele foi o responsável pelo retiro espiritual dos bispos brasileiros durante a Assembleia Geral da CNBB deste ano -o retiro aconteceu em 4 e 5 de maio.
Tolentino é hoje uma símbolo referência mundial da espiritualidade do papado de Francisco. É significativo, portanto que ele dedique um importante trecho de seu livro “A Mística do Instante” a Rosa Luxemburgo.
“Um dos textos mais comoventes que eu conheço é uma carta de Rosa Luxemburgo escrita a uma amiga da prisão feminina de Wroclaw, por ocasião do Natal, poucos meses antes da sua execução. (…)
Era o terceiro Natal que a filósofa e sindicalista passava na prisão. Ela buscou uma árvore de Natal para si, mas não conseguiu remediar outra coisa, senão um arbusto miserável e despojado, que, mesmo assim, carregou para a própria cela.
E isso a levou a se interrogar sobre a ‘ebriedade alegre’ que conseguia armazenar naquele inferno, aquela irredutível espécie de confiança que persistia nela apesar do desconforto e da desolação.
Ela escreveu naquela noite: ‘Estou aqui deitada, sozinha, em silêncio, envolta nestes múltiplos e escuros lençóis da escuridão, do tédio, da prisão de inverno – e, enquanto isso, o meu coração bate de uma alegria interior incompreensível e desconhecida, como se eu fosse caminhando ao sol radioso em um prado florido. […] Nestes momentos eu penso em você e eu gostaria tanto de lhe transmitir esta chave mágica, para que você perceba sempre e em qualquer situação o lado bonito e alegre da vida’.
E, quando se pergunta mais profundamente o porquê de tanta ‘felicidade’, ela declara: ‘Eu não o encontro, de fato, e não posso deixar de sorrir ainda de mim mesma. Acho que esse segredo nada mais é do que a própria vida’.
A última parte da carta não é menos inesquecível. Rosa Luxemburgo assiste à chegada de carros repletos de pesados sacos de indumentos militares, que as prisioneiras deverão emendar. São puxados por búfalos capturados na Romênia e exibidos como troféus.
Pela primeira vez, ela observa a indizível dor dos animais. É um choque e uma revelação. Quando se atreve a pedir ‘um pouco de compaixão’ por aquelas criaturas esgotadas, o carreteiro lhe responde violentamente: ‘E de nós, quem tem piedade?’. E, na frente dela, recomeça a bater fortemente nos búfalos.
O olhar de Rosa Luxemburgo se fixa, então, em um deles. O animal sangrava, mas permanecia imóvel, com os olhos mais mansos do que ela jamais tinha visto. Naqueles olhos, ela percebeu uma impotência semelhante a de uma criança que estivesse chorando por um longo tempo sem ser ouvida.
‘Era exatamente a expressão de uma criança que é punida duramente e não sabe por qual motivo nem por que, que não sabe como escapar do sofrimento e da força bruta… Eu estava diante dele, o animal me olhava, as lágrimas escorriam dos meus olhos, eram as suas lágrimas. Diante da dor de um irmão querido, é impossível não ser sacudido pelos mais dolorosos soluços como na minha impotência diante desse sofrimento mudo.’
Da empatia que ligava naquele momento uma mulher a um anônimo animal ferido, nascia uma nova forma de resistência à brutalidade e à barbárie. ‘Diante dos meus olhos, vi passar a guerra no seu estado puro’: Rosa Luxemburgo compreendeu que uma comunhão entre os seres humanos e as outras criaturas não é apenas possível. É urgente e necessária.
Carta de natal de Rosa Luxemburgo
Do blog: Esquerda
Em meados de dezembro de 1917, Rosa Luxemburgo escreveu esta carta a Sophie Liebknecht. Foi o último dos três natais que passaria na prisão. Apesar de só ter sido libertada em novembro do ano seguinte. A partir daí o tempo acelerou tragicamente. Até janeiro de 1918.
Karl está na prisão de Luckau desde há um ano. Tenho pensado tanto nisso neste mês e sobre como apenas passou um ano desde que me vieste ver a Wronke e me deste aquela adorável árvore de Natal. Desta vez arranjei uma aqui. Mas trouxeram-me uma árvore raquítica com alguns dos ramos partidos – não tem comparação com a tua. Nem sei como vou conseguir colocar-lhe todas as oito velas que tenho para lhe por. Este é o meu terceiro Natal encarcerada mas não deixes isso desanimar-te. Estou tão tranquila e alegre como sempre. Na última noite fiquei acordada por muito tempo. Tenho de ir para a cama às dez mas não consigo adormecer antes da uma da manhã, por isso deito-me no escuro, ponderando muitas coisas.
Na última noite os meus pensamentos fluíram desta forma: “é tão estranho que esteja sempre numa espécie de intoxicação alegre apesar de não ter causas suficientes para isso. Aqui estou eu deitada numa cela de prisão escura sobre um colchão duro como uma pedra; o edifício tem a sua habitual quietude de adro de igreja, de tal forma que se poderia já estar sepultada; através da janela cai cruzando a cama um cintilar de luz do candeeiro que está toda a noite aceso em frente da prisão. A espaços consigo ouvir à distância o barulho fraco do comboio que passa ou bem perto a tosse seca do guarda prisional tal como as suas botas pesadas já que ele dá algumas passadas lentas para esticar as pernas. O rangido do cascalho sob os seus pés tem um som tão desesperançado que toda a fadiga e futilidade da existência parece ser assim irradiada na noite sombria e húmida. Deito-me aqui sozinha e em silêncio, envolvida nos múltiplos agasalhos negros da escuridão, do tédio, da falta de liberdade e do inverno – e contudo o meu coração bate com uma incomensurável e incompreensível alegria interior, tal como se me estivesse a mover num raio de sol brilhante num prado florescente
E na escuridão eu sorrio à vida, como se fosse possuidora de um talismã que me tornasse capaz de transformar tudo o que é mau e trágico em serenidade e felicidade. Mas quando procuro na minha mente a causa desta alegria, encontro que não há causa para ela e apenas consigo rir-me de mim própria” – acho que a chave para o enigma é simplesmente a própria vida, esta profunda escuridão da noite é leve e bonita como veludo, basta olhar para ela da forma certa. O rangido do cascalho húmido sob as pisadas lentas e pesadas do guarda prisional é igualmente uma adorável pequena canção de vida – para quem tenha ouvidos para a ouvir. Em tais momento penso em ti, e em como faria o que pudesse para te entregar esta chave mágica também. Assim, em todos os tempos e lugares, serias capaz de ver a beleza e a alegria da lida; então também poderias viver numa doce embrieguês e fazer o teu caminho por entre um prado fluorescente. Não penses que te estou a oferecer alegrias imaginárias ou que estou a pregar o ascetismo. Quero que proves todos os prazeres reais dos sentidos. O meu único desejo é dar-te para além disso o meu inesgotável sentido de êxtase interior.
Se o pudesse fazer, estaria à vontade sobre ti, sabendo que na tua passagem pela vida estarias vestida com um manto enfeitado de estrelas que te protegeria de tudo o que é mesquinho, trivial ou assediante.
Estou interessada em ouvir sobre o adorável cacho de bagas, das negras e vermelhas-violetas, que colheste no parque Steglitz. As amoras talvez tenham sido mais maduras – claro que conheces as bagas mais maduras que ficam penduradas em cachos grossos e pesados entre as folhas em forma de leque. Mais provavelmente, contudo, eram ligustros esguios e graciosos com picos verticais de bagas por entre as folhas verdes estreitas e alongadas. As bagas avermelhadas-violeta, quase escondidas pelas pequenas folhas, devem ter sido as da nespereira anã; a sua cor apropriada é o vermelho mas nesta época tardia em que estão demasiado maduras e começam a apodrecer ganham muitas vezes um tom violeta. As folhas são como as do mirtilo, pequenas, pontiagudas, verde escuras, com uma superfície como se fosse couro em cima mas rugosas por baixo.
Sonyusha, conheces o Verhängnisvolle Gabel de Platen? (1) Poderias enviar-mo ou trazê-lo quando vieres? Karl disse-me que o leu em casa. Os poemas de George são belos. Agora já sei de onde tiraste o verso “e entre o farfalhar do milho avermelhado” que gostavas de citar quando estavas a passear no campo. Gostava que me copiasses o Amades Moderno (2) quando tiveres tempo. Gosto tanto do poema (um conhecimento que devo às composições de Hugo Wolf) mas não o tenho aqui. Ainda estás a ler a Lenda Lessing? Estive a reler a História do Materialismo de Lange (3) que acho sempre estimulante e revigorante. Espero que a leias algum dia.
Sonichka, querida, tive uma dor tão grande recentemente. No pátio onde caminho, frequentemente chegam camiões do exército, carregados de mochilas ou velhos casacos e camisas vindos da frente de guerra; por vezes estão manchados com sangue. São enviados para as celas das mulheres para serem remendados e depois regressam para serem usados pelo exército. O outro dia um destes camiões foi puxado por uma parelha de búfalos em vez de cavalos. Nunca tinha visto estas criaturas perto antes. Têm uma compleição mais poderosa que os nossos bois, com cabeças achatadas, e cornos firmemente recurvados, de tal modo que os seus crânios têm uma forma parecida com os das ovelhas. São pretos e têm olhos grandes e meigos. Os búfalos são troféus de guerra na Roménia. Os soldados-condutores dizem que é muito difícil apanhar estes animais, que sempre têm corrido livremente, e ainda mais difícil de quebrá-los de modo a domesticá-los. Têm sido impiedosamente açoitados – sob o princípio do “vae victis”(4).
Há quase uma centena de cabeças apenas em Breslau. Estavam acostumados aos luxuriantes prados romenos e aqui têm de suportar uma forragem fraca e escassa. Explorados sem limites, sob a canga de cargas pesadas, rapidamente se esgotam a trabalhar até à morte.
O outro dia um camião veio carregado de sacas, tão sobrecarregado de facto que os búfalos eram incapazes de arrastá-lo através da soleira do portão. O soldado condutor, um tipo bruto, espancou as pobres bestas de maneira tão selvagem com o cabo do seu chicote que a guarda do portão, indignada com o que via, lhe pediu compaixão pelos animais. “Não mais do que alguém tem compaixão por nós homens”, respondeu ele com um sorriso malvado e redobrou os seus golpes. Lentamente os búfalos conseguiram fazer a carga sobre o obstáculo mas um deles estava a sangrar. Sabe-se que a sua pele é conhecida pela sua espessura e dureza mas tinha sido rasgada. Enquanto os camiões estavam a ser descarregados, as bestas, que estavam absolutamente exaustas, permaneceram perfeitamente paradas.
O que estava a sangrar tinha uma expressão na sua cara preta e nos seus olhos pretos meigos como a de uma criança a chorar – uma criança que tenha sido fortemente espancada e não perceba porquê, nem saiba como escapar ao tormento dos maus tratos. Fiquei em frente dos animais; a besta olhou para mim: as lágrimas jorraram dos meus olhos. O sofrimento de um irmão muito amado dificilmente poderia ter-me afetado mais profundamente do que estava comovida pela minha impotência face à sua muda agonia. Muito longe, perdidos para sempre, estavam os prados verdejantes e luxuriantes da Roménia. Quão diferente é lá a luz do sol, o sopro do vento; quão diferente é lá a canção dos pássaros e o chamamento melodioso do pastor.
Em vez disso, a rua hedionda, o estábulo fétido, o feno rançoso misturado com a palha bolorenta, os homens estranhos e terríveis – golpe após golpe e com sangue a escorrer das feridas abertas. Pobre miserável, sou tão impotente, tão estúpida, quanto tu próprio; sinto-me unida a ti na tua dor, na tua fraqueza e na minha saudade.
Enquanto isso as mulheres prisioneiras acotovelavam-se enquanto descarregavam atarefadamente a carrinha e carregavam as sacas pesadas para o edifício. O condutor, de mãos nos bolsos, galgava o pátio de cima para baixo, sorrindo a si próprio enquanto assobiava uma moda popular. Tive uma visão do esplendor da guerra!...
Deixa estar, minha Sonyusha; deves estar calma e feliz na mesma. Tal é a vida e temos de a tomar tal como é, bravamente, cabeças erguidas, sorrindo sempre – apesar de tudo.
Tradução de Carlos Carujo a partir da versão inglesa disponível em marxists.org
(1) O Garfo Fatal, uma comédia satírica
(2) Uma canção de Goethe.
(3) Lange foi também autor de “A questão do trabalho, o seu significado para o presente e o futuro”.
(4) Expressão latina que significa literalmente “Ai dos vencidos”. Remete para o facto dos vencidos em batalhas não deverem esperar misericórdia dos vencedores.
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