Modern Monetary Theory and the crisis of capitalism: Part one
The Deficit Myth by Stephanie Kelton - por Nick Beams
Ao longo da história do capitalismo e de suas recorrentes crises, várias teorias foram apresentadas por teóricos de “esquerda” que sustentam que essas crises e os males sociais que geram podem ser amenizados, se não totalmente eliminados, mudando o sistema monetário sem tocar nos fundamentos da própria produção capitalista.
Embora se apresentem como de “esquerda” e “progressistas”, defendendo a reforma do sistema capitalista, a história mostra que em períodos de grande crise procuram desviar a classe trabalhadora do programa da revolução socialista, ao mesmo tempo em que fornecem os fundamentos ideológicos para forças políticas que defendem uma solução contrarrevolucionária para a crise.
A Teoria Monetária Moderna (MMT, na sigla em inglês), cujos princípios fundamentais são apresentados no livro The Deficit Myth: Modern Monetary Theory and the Birth of the People’s Economy (O Mito do Déficit: Teoria Monetária Moderna e o Nascimento da Economia do Povo) por uma de suas principais defensoras, é a mais recente expressão deste fenômeno.
A luta contra tais tendências remonta às próprias origens da economia política marxista.
No inverno de 1857-58, em meio a uma crise econômica global, Marx escreveu o rascunho inicial da obra que viria a se tornar O Capital, publicado em 1867. Esse rascunho chegou até nós na forma dos Grundrisse, publicado pela primeira vez em inglês em 1973, que tem uma relevância particular para a compreensão da MMT.
O ponto de partida de Marx foi uma análise do dinheiro e a refutação das teorias do anarquista francês Proudhon, na época considerado um importante teórico socialista. Os Grundrisse começam com uma citação de um dos seguidores de Proudhon, Alfred Darimon:
“A raiz do mal é a predominância que a opinião atribui obstinadamente ao papel dos metais preciosos em circulação e troca.”
Pierre-Joseph Proudhon |
Segundo os proudhonistas, os males sociais do capitalismo poderiam ser superados se apenas o ouro e outros metais preciosos fossem retirados de seu status privilegiado como dinheiro e reduzidos ao status de mercadoria comum. Se isso fosse feito, a desigualdade do intercâmbio entre capital e trabalho poderia ser eliminada e a igualdade natural de todas as formas de trabalho poderia ser restaurada.
A essência da refutação de Marx consistia em mostrar que o dinheiro não era algum dispositivo inventado com o objetivo de facilitar as trocas, mas surgiu do próprio sistema de produção de mercadorias, no qual o trabalho dos particulares envolvidos na produção para o mercado, ou seja, a produção social, tem que encontrar alguma medida independente. O dinheiro, insistiu Marx, não surge de uma convenção mais do que o Estado, mas se desenvolve a partir de uma sociedade baseada na troca de mercadorias.
O ponto essencial que Marx estabeleceu, através de uma análise detalhada das concepções proudhonistas, foi que o dinheiro não criou os conflitos e contradições da sociedade capitalista, que assumiu formas cada vez mais violentas quando a força de trabalho se tornou uma mercadoria na forma de trabalho assalariado, mas sim “o desenvolvimento dessas contradições é que cria o poder aparentemente transcendental do dinheiro”. [Grundrisse, Penguin Books, 1991, p. 146]
O objetivo dos proudhonistas era acabar com os males sociais do capitalismo, que estavam se tornando cada vez mais claros devido a suas crises recorrentes, alterando as relações de distribuição e circulação, facilitadas pelo dinheiro, sem tocar nas relações sociais subjacentes da produção, baseadas na produção de mercadorias.
Aqui Marx levantou o que ele chamou de questão fundamental: “Podem as relações existentes de produção e as relações de distribuição correspondentes sofrer uma revolução por uma mudança no instrumento de circulação, na organização da circulação?” E, ainda, “pode tal transformação da circulação ser empreendida sem tocar nas relações de produção existentes e nas relações sociais que nelas repousam?” [Grundrisse, p. 122]
O esquema proudhonista, que se baseava na continuação da produção de mercadorias, a base da economia capitalista, era uma utopia. Era, como Marx o caracterizava, o mesmo que abolir o Papa sem acabar com a Igreja Católica.
As teorias proudhonistas da década de 1850, que buscavam resolver as crises do capitalismo através do que Marx chamou de “truques de circulação”, foram repetidas de várias maneiras desde então.
Em meio ao sofrimento social que afligia os trabalhadores e pequenos agricultores nos EUA durante a década de 1890, resultado de uma severa crise econômica que viu o desemprego aumentar para cerca de 25% em 1893, William Jennings Bryan tornou-se o candidato presidencial do Partido Democrata em 1896 prometendo remover a “cruz de ouro” da humanidade.
Acreditava-se que o padrão-ouro tinha sido a causa da deflação, e o sistema monetário deveria ser alterado de maneira que passasse a ser lastreado também em prata, o que promoveria um retorno à prosperidade econômica.
O aprofundamento da crise econômica do capitalismo global após a Primeira Guerra Mundial levou ao desenvolvimento de uma série de teorias que afirmavam que a crise poderia ser aliviada através de mudanças nas formas de distribuição econômica e no sistema monetário.
Nos anos 1920, C. H. Douglas apresentou a teoria do crédito social. Contrastando a diferença entre o valor da produção da fábrica e os pagamentos feitos sob a forma de ordenados, salários e dividendos, ele propôs o pagamento de um dividendo nacional para compensar esse déficit. A teoria do crédito social de Douglas e sua noção de demanda insuficiente encontraram expressão na visão de Keynes, que sustentou que os problemas da economia capitalista resultavam de uma demanda efetiva insuficiente, uma lacuna que deveria ser preenchida pelos gastos governamentais.
Durante a década de 1920, as principais moedas ainda estavam lastreadas em ouro – uma situação que passou a ser vista por alguns críticos como responsável pela continuação de condições econômicas de crise.
Em 1924, o economista alemão Georg Friedrich Knapp elaborou uma nova teoria do dinheiro. Ele sustentou que o dinheiro não surgiu da produção de mercadorias e não tinha nenhum valor intrínseco. Era um símbolo (“token”) criado pelos governos como meio de pagamento das obrigações fiscais que impunham. Essa teoria, conhecida como cartalismo (derivada da palavra latina charta, que significa símbolo), é a base da MMT.
Todas essas teorias, desde a de Proudhon, passando pela de Keynes até a MMT, têm uma perspectiva política muito definida. Tendo surgidas em períodos de crise econômica e social, elas se baseiam na posição de que estas crises não surgem das contradições inerentes ao capitalismo, enraizadas na produção de mercadorias e na transformação da força de trabalho em uma mercadoria e sua exploração, mas podem ser superadas através de uma mudança nas políticas governamentais e do desenvolvimento de um novo sistema monetário e de crédito.
O objetivo delas é desviar a classe trabalhadora da tarefa que lhe é imposta por essas crises – a de derrubar o modo capitalista de produção e empreender a reconstrução da economia em bases socialistas. Ao contrário, segundo esses teóricos, a tarefa do dia é convencer os poderes que devem abandonar suas teorias incorretas e adotar as soluções que propõem, que fornecerão uma base para a expansão capitalista e evitarão a necessidade de uma revolução social. Esse é o tema essencial do livro de Kelton e da MMT.
Desde o início, Kelton escreve com lirismo sobre o poder da MMT, afirmando que desafia o status quo com uma economia sólida e “nos dá o poder de imaginar uma nova política e uma nova economia”, nos permitindo ver que “outro tipo de mundo é possível, um mundo em que podemos investir em cuidados de saúde, educação e infraestrutura duradoura”. [The Deficit Myth, pp. 12-13]
Não há dúvida de que tais coisas são materialmente possíveis, devido ao vasto desenvolvimento das forças produtivas, criadas pelo trabalho de milhões de trabalhadores, que seriam utilizadas para satisfazer as necessidades humanas numa economia socialista planejada. Mas são impossíveis de alcançar sob o capitalismo devido às relações sociais em que se baseia – relações que a MMT ignora completamente, tratando a economia capitalista não como um sistema social, com divisões de classe irreconciliáveis, mas como uma espécie de máquina.De acordo com Kelton, os males sociais criados pelo capitalismo são o resultado não de suas contradições objetivas, mas de um pensamento incorreto. Ela sustenta que políticas econômicas que priorizam a necessidade humana e o interesse público são possíveis dentro do capitalismo apenas se “nossas restrições autoimpostas” forem abandonadas.
Essas restrições, sustenta, surgem da forma como os gastos do governo são vistos e comparados com os gastos domésticos. Uma família tem que adquirir dinheiro para financiar suas despesas e deve equilibrar seu orçamento. Ou seja, é usuária de dinheiro. O governo, por outro lado, é emissor de dinheiro e não está sujeito a tais restrições, argumenta.
Uma família não pode criar dólares para financiar suas despesas, mas o governo pode. Isso significa que os limites de gastos que se aplicam a uma família não se aplicam a um governo soberano que emite sua própria moeda. Ele pode sempre financiar seus gastos simplesmente imprimindo mais dinheiro, ou apenas criando dinheiro apertando um botão de computador no Federal Reserve que transfere dinheiro do banco central para outra conta bancária.
“A distinção entre os usuários de moeda e o emissor de moeda está no coração da MMT” [p. 18], escreve.
A MMT não sustenta, entretanto, que não há limites para tais gastos, mas que eles não são determinados por restrições financeiras. Eles surgem somente quando todos os recursos disponíveis da economia real são plenamente utilizados e outras demandas sobre eles, resultantes dos gastos do governo, vão além da capacidade da economia, levando assim à inflação. Mas até esse momento, há muitos problemas sociais, econômicos e até ecológicos, como a mudança climática, que podem ser resolvidos.
O primeiro ponto a ser observado é que esta não é apenas uma agenda “EUA em primeiro lugar”, mas uma agenda “Somente os EUA”.
O Tesouro americano tem uma capacidade aparentemente ilimitada de criar mais dólares devido ao papel do dólar como moeda global.
Entretanto, Kelton afirma que outros países, como emissores de sua própria moeda, incluindo países como o Reino Unido, Austrália e Canadá, podem fazer a mesma coisa, e a MMT “oferece perspectivas” para países com pouca ou nenhuma soberania monetária, como Panamá, Tunísia, Grécia, Venezuela e muitos outros.
Mas não obstante o papel privilegiado do dólar americano, existem também limites inerentes à criação de dólares pelo Fed dos EUA, que derivam da própria natureza do dinheiro.
A produção de mercadorias, a base da economia capitalista, é realizada por entidades privadas, empresas e indivíduos. Mas, ao mesmo tempo, é uma produção social. Toda sociedade tem que resolver a questão de como o trabalho social disponível é alocado, como os recursos de mão de obra disponíveis são distribuídos, a fim de continuar a funcionar.
Em uma sociedade socialista, essa tarefa será realizada através de um plano consciente e de uma organização democrática. Na sociedade capitalista, ela é realizada através do mercado. Isso significa equiparar os diferentes tipos de mão de obra necessários para o funcionamento da sociedade. Em uma sociedade produtora de mercadorias, onde o trabalho é ao mesmo tempo social, mas realizado de forma privada, essa alocação é realizada através do sistema de valor.
O valor de cada mercadoria é determinado pela quantidade de mão de obra socialmente necessária para produzi-la. Mas esse valor deve adquirir uma forma material independente, e essa forma é o dinheiro. Como disse Marx: “O dinheiro é tempo de trabalho na forma de um objeto geral, ou a objetivação do tempo de trabalho geral, tempo de trabalho como uma mercadoria geral”. [Grundrisse, p. 168]
É através do dinheiro que se expressa o vínculo social objetivo que realmente existe entre os produtores privados individuais. Os economistas, escreveu Marx, dizem que as pessoas depositam confiança em uma coisa, o dinheiro, porque não depositam fé umas nas outras. “Mas por que eles têm fé na coisa? Obviamente porque essa coisa é uma relação objetivada entre pessoas; porque é uma relação objetivada de valor de troca e o valor de troca nada mais é do que a relação entre as atividades produtivas das pessoas”. [Grundrisse, p. 160]
Continua AQUI a segunda parte
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