quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Os quatro fatídicos anos de Leon Trotsky em Prinkipo: 1929-1933 - Parte 1

 

 

Leon Trotsky’s four fateful years in Prinkipo: 1929-1933 por David North, um teórico marxista americano

Oitenta anos atrás, em 20 de agosto de 1940, Leon Trotsky — o co-líder exilado da Revolução de 1917 e fundador da Quarta Internacional — foi mortalmente ferido por um agente da polícia secreta da União Soviética, a GPU. O líder revolucionário morreu em um hospital na Cidade do México 26 horas depois, em 21 de agosto.



O assassinato de Trotsky foi o resultado de uma massiva conspiração política organizada pelo regime burocrático totalitário liderado por Stalin, cujo nome será para toda a história sinônimo de traição contrarrevolucionária e criminalidade ilimitada. O assassinato de Trotsky foi o auge da campanha de genocídio político dirigida pelo Kremlin, cujo objetivo era a extinção física de toda a geração de revolucionários marxistas e trabalhadores socialistas avançados que tinham desempenhado um papel central na preparação e liderança da revolução bolchevique e no estabelecimento do primeiro Estado operário da história. Os três julgamentos de fachada realizados em Moscou entre 1936 e 1938 — armações judiciais que forneceram uma cobertura pseudolegal para o assassinato de praticamente todos os principais líderes da Revolução de Outubro — foram apenas a manifestação pública de uma campanha de terror que resultou na morte de centenas de milhares e deu um golpe devastador no desenvolvimento intelectual e cultural da União Soviética e na luta mundial pelo socialismo.



Exilado, tendo a sua cidadania retirada pela União Soviética, vivendo em "um planeta sem visto", sem qualquer acesso aos atributos convencionais de poder, armado apenas com uma caneta e dependente do apoio de um número relativamente pequeno de camaradas perseguidos em todo o mundo, não havia homem mais temido pelos poderes que governavam a Terra do que Trotsky. Trotsky — fundador e líder da Quarta Internacional, "o partido da oposição inconciliável, não apenas nos países capitalistas, mas também na URSS" — exerceu uma influência política e intelectual inigualável por qualquer um dos seus contemporâneos. Ele se elevou acima de todos eles. 

Em um ensaio intitulado "O lugar de Trotsky na História", C.L.R. James, um intelectual e historiador socialista caribenho, escreveu:
Durante a sua última década, ele [Trotsky] foi um exilado, aparentemente impotente. Durante esses mesmos dez anos, Stalin, seu rival, assumiu um poder como nenhum homem na Europa desde Napoleão. Hitler abalou o mundo e disputa para domá-lo como um gigante enquanto ele durar. Roosevelt é o presidente mais poderoso que já governou nos Estados Unidos, e os Estados Unidos são a nação mais poderosa do mundo. Entretanto, o julgamento marxista de Trotsky é tão confiante quanto o julgamento de Engels sobre Marx. Antes de seu período no poder, durante ele, e após a sua queda, Trotsky só era superado por Lenin entre os seus contemporâneos, e, após a morte de Lenin, foi a maior mente dos nossos tempos. Nós deixamos esse julgamento para a história. (Ver: “Trotsky’s place in History,” in C. L. R. James and Revolutionary Marxism: Selected Writings of C.L.R. James 1939-49, ed. Scott McLemee e Paul Le Blanc (Chicago, 2018), p. 93)


A grandeza de Trotsky foi determinada não apenas pelo fato de que ele analisou, com brilho incomparável, o mundo como ele era. Ele também incorporava o processo revolucionário que determinaria o seu futuro. Ele declarou durante uma sessão da Comissão Dewey, que realizou audiências em abril de 1937 para investigar as alegações do Kremlin contra Trotsky: — concluindo posteriormente que os Processos de Moscou eram uma armação — "Minha política não é estabelecida para fins de convenções diplomáticas, mas para o desenvolvimento do movimento internacional da classe trabalhadora". [The Case of Leon Trotsky (New York, 1968), p. 291]

Trotsky desprezou toda forma de charlatanismo político, que finge que há soluções fáceis — ou seja, não-revolucionárias — para os imensos problemas históricos decorrentes da agonia mortal do sistema capitalista.


A política revolucionária não alcançou os seus objetivos prometendo milagres. Trotsky insistiu que grandes avanços sociais podem ser alcançados "exclusivamente através da educação das massas por meio da agitação, explicando aos trabalhadores o que eles devem defender e o que eles devem derrubar". Essa abordagem baseada profundamente em princípios da política revolucionária também formou a base da concepção de Trotsky sobre a moralidade. "Somente aqueles métodos que não entram em conflito com os interesses da revolução são permitidos", escreveu Trotsky. A adesão a esse princípio colocou Trotsky, mesmo se considerada apenas do ponto de vista moral, em absoluta oposição ao stalinismo, cujos métodos eram totalmente destrutivos para as necessidades da revolução social e, portanto, para o progresso da humanidade. [Leon Trotsky “The USSR in War,” In Defence of Marxism (London, 1971), p. 21]

A morte prematura de Lenin em janeiro de 1924, com apenas 53 anos de idade, foi uma tragédia política. O assassinato de Trotsky, aos 60 anos de idade, foi uma catástrofe. Seu assassinato privou a classe trabalhadora do último representante sobrevivente do bolchevismo e o maior estrategista da revolução socialista mundial. Entretanto, o trabalho teórico e político que Trotsky realizou no último ano de sua vida — um ano dominado pelo início da Segunda Guerra Mundial — foi decisivo para garantir a sobrevivência da Quarta Internacional diante do que poderiam ter se mostrado dificuldades insuperáveis.

Trotsky foi assassinado no auge das suas habilidades intelectuais. Apesar da sua impressão de que a sua saúde estava se deteriorando, não havia sinal de uma diminuição das suas energias políticas. Mesmo produzindo diariamente análises políticas e ensaios polêmicos, Trotsky trabalhou arduamente em uma biografia de Stalin. Mesmo sendo uma obra inacabada, ela pode ser descrita como uma obra-prima literária.

Os escritos de Trotsky durante o último ano de sua vida não foram apenas tão brilhantes como em períodos anteriores; o escopo da sua análise dos acontecimentos de 1939-1940 se estendeu ao futuro em termos de relevância duradoura. Nenhuma outra figura da sua época exibia uma compreensão comparável sobre o situação mundial e para onde ela se dirigia.

Por exemplo, Trotsky foi entrevistado por um grupo de jornalistas estadunidenses em 23 de julho de 1939, apenas seis semanas antes do início da Segunda Guerra Mundial. Eles estavam ansiosos para saber a sua avaliação da situação mundial. Para o benefício dos jornalistas, Trotsky falava inglês. Ele começou relembrando que havia prometido a um professor visitante estadunidense que melhoraria o seu inglês se o governo dos EUA concedesse a ele um visto para entrar no país. Lamentavelmente, Trotsky observou, "parece que eles não estão interessados no meu inglês".

Embora Trotsky não estivesse satisfeito com o seu domínio do inglês, a transcrição de suas observações não deixa dúvidas sobre o seu domínio da complexidade da situação mundial. "O sistema capitalista", afirmou ele, "está em uma situação de impasse". Trotsky acrescentou:

A meu ver, não vejo qualquer desfecho normal, legal, pacífico para esse impasse. O desfecho só pode ser criado por uma tremenda explosão histórica. As explosões históricas são de dois tipos — guerras e revoluções. Acredito que teremos ambos. Os programas dos atuais governos, tanto os bons quanto os maus, — se supormos que também existam bons governos — programas de diferentes partidos, programas pacifistas e programas reformistas, parecem agora, pelo menos para um homem que os observa à distância, brincadeira de criança ao lado de um vulcão antes de uma erupção. Esse é o quadro geral do mundo de hoje. [On the Eve of World War II, Writings of Leon Trotsky 1939-40 (New York, 1973), p. 17]

Trotsky então fez referência à Feira Mundial de Nova Iorque que estava acontecendo, cujo tema era o "Mundo do Amanhã".

Vocês criaram uma Feira Mundial. Posso julgá-la apenas à distância pela mesma razão pela qual o meu inglês é tão ruim, mas pelo que aprendi sobre a feira lendo os jornais, ela é uma tremenda criação humana do ponto de vista do "Mundo do Amanhã". Eu acredito que essa caracterização seja um pouco unilateral. Somente do ponto de vista técnico sua feira mundial pode ser chamada de "Mundo do Amanhã", porque se você quiser considerar o mundo real do amanhã, veríamos uma centena de aviões militares sobre a feira mundial, com bombas, algumas centenas de bombas, e o resultado dessa atividade seria o mundo de amanhã. Esse grandioso poder criativo humano, por um lado, e esse terrível atraso no campo que é o mais importante para nós, o campo social — genialidade técnica e, permitam-me a palavra, idiotice social — esse é o mundo de hoje. [On the Eve of World War II, Writings of Leon Trotsky 1939-40 (New York, 1973), p. 17-18]


Dificilmente seria necessário mudar uma única palavra para descrever o "Mundo de Hoje" contemporâneo e uma previsão do "Mundo de Amanhã" — ou seja, o mundo que emergirá das crises da década atual. Em todo o mundo, com governos — combinando ganância sem limites com estupidez sem limites — incapazes de responder com competência ou humanidade, a seguinte pergunta está sendo feita: Como essa crise será resolvida? Nossa resposta é a mesma dada por Trotsky: A solução virá sob a forma de uma "tremenda explosão histórica". Como Trotsky explicou em 1939, tais explosões são de dois tipos: guerras e revoluções. Ambas estão na ordem do dia.

Os jornalistas que questionaram Trotsky em julho de 1939 também estavam ansiosos para saber se ele tinha algum conselho para dar ao governo dos EUA sobre a condução da sua política externa. Não sem um traço de humor, Trotsky respondeu:

Devo dizer que não me sinto competente para dar conselhos ao governo de Washington, pela mesma razão política pela qual o governo de Washington não considera necessário me dar um visto. Estamos em uma posição social diferente daquela do governo de Washington. Eu poderia dar conselhos a um governo que tivesse os mesmos objetivos que o meu, não a um governo capitalista, e o governo dos Estados Unidos, apesar do New Deal, é, em minha opinião, um governo imperialista e capitalista. Só posso dizer o que um governo revolucionário deveria fazer — um verdadeiro governo operário nos Estados Unidos.

Acredito que a primeira coisa seria expropriar as Sessenta Famílias. Seria uma medida muito boa, não apenas do ponto de vista nacional, mas do ponto de vista da resolução de assuntos mundiais — seria um bom exemplo para as outras nações. [On the Eve of World War II, Writings of Leon Trotsky 1939-40 (New York, 1973), p. 25]

Trotsky reconheceu que isso não seria realizado no futuro imediato. As derrotas da classe trabalhadora na Europa e a iminência da guerra atrasariam a revolução nos Estados Unidos. A entrada dos Estados Unidos na próxima guerra era apenas uma questão de tempo. "Se o capitalismo estadunidense sobreviver, e ele sobreviverá por algum tempo, teremos nos Estados Unidos o mais poderoso imperialismo e militarismo do mundo". [On the Eve of World War II, Writings of Leon Trotsky 1939-40 (New York, 1973), p. 25]

Trotsky rechaçou as alegações de que as elites dominantes estavam em guerra pela “Defesa da ‘Pátria’”. A burguesia, escreveu ele, “nunca defende a pátria em nome da pátria. Eles defendem a propriedade privada, os privilégios, os lucros... O patriotismo oficial é uma máscara para os interesses exploradores. Os trabalhadores que têm consciência de classe colocam essa máscara de lado, com desprezo.” [On the Eve of World War II, Writings of Leon Trotsky 1939-40 (New York, 1973), p. 26] Quanto à pretensiosa invocação aos ideais democráticos, estes não foram menos fraudulentos do que as declarações patrióticas. Todas as democracias, com o Reino Unido em primeiro lugar, ajudaram a levar Hitler ao poder. E todas elas obtiveram uma parte significativa de sua riqueza pela exploração brutal dos povos coloniais.

O regime de Hitler nada mais era do que “a destilação quimicamente pura da cultura do imperialismo”. A alegação hipócrita de que as potências democráticas estavam combatendo o fascismo era uma flagrante distorção política da história e da realidade.

Os governos democráticos, que em sua época saudaram Hitler como um combatente contra o bolchevismo, agora fazem dele uma espécie de Satanás inesperadamente solto das profundezas do inferno, que viola a santidade dos tratados, fronteiras, normas e regulamentos. Se não fosse por Hitler, o mundo capitalista floresceria como um jardim. Que mentira miserável! Este epiléptico alemão com uma máquina de calcular no crânio e poder ilimitado em suas mãos não caiu do céu ou saiu do inferno: ele não é nada mais que a personificação de todas as forças destrutivas do imperialismo. [On the Eve of World War II, Writings of Leon Trotsky 1939-40 (New York, 1973), p. 25]

Trotsky então se voltou à análise do papel desempenhado pelo regime stalinista em sua cumplicidade pelo início da guerra.

A aliança de Stalin com Hitler, que levantou a cortina sobre a guerra mundial e levou diretamente à escravidão do povo polonês, resultou da fraqueza da URSS e do pânico do Kremlin diante da Alemanha. A responsabilidade por essa fraqueza recai sobre o próprio Kremlin; sua política interna, que abriu um abismo entre a casta dominante e o povo; sua política externa, que sacrificou os interesses da revolução mundial em detrimento dos interesses da camarilha stalinista. 

[On the Eve of World War II, Writings of Leon Trotsky 1939-40 (New York, 1973), p. 25]


Apesar dos crimes de Stalin, uma invasão da União Soviética pelos nazistas – que Trotsky acreditava ser inevitável – colocaria em questão não apenas a sobrevivência da ditadura do Kremlin, mas a da URSS. As conquistas da revolução, por mais distorcidas e desfiguradas que tivessem sido pelo stalinismo, não poderiam ser entregues aos exércitos invasores do imperialismo. “Ao mesmo tempo que empreende uma luta incansável contra a oligarquia de Moscou”, proclamou Trotsky, “a Quarta Internacional rejeita definitivamente qualquer política que possa ajudar o imperialismo contra a URSS”. Ele continuou:

Trotsky fez uma outra previsão na entrevista de julho. Na verdade, era a reafirmação de uma análise política da política externa soviética que ele estava avançando nos cinco anos anteriores. Referindo-se à remoção do antigo diplomata soviético, Maxim Litvinov, do cargo de ministro das relações exteriores, e a sua substituição pelo cúmplice mais próximo de Stalin, Molotov, Trotsky declarou que a mudança foi "uma dica do Kremlin para Hitler de que nós [Stalin] estamos prontos para mudar a nossa política, para realizar o nosso objetivo, a nossa meta, que apresentamos a você e a Hitler há alguns anos, porque o objetivo de Stalin na política internacional é um acordo com Hitler". [On the Eve of World War II, Writings of Leon Trotsky 1939-40 (New York, 1973), p. 19-20]


Mesmo naquela data tardia, a idéia de que a União Soviética se aliaria à Alemanha nazista era considerada absurda por praticamente todas as opiniões dos "especialistas". Porém, como foi o caso tantas vezes no passado, os eventos confirmaram a análise de Trotsky. Exatamente um mês após a entrevista de Trotsky, em 23 de agosto de 1939, o Pacto de Não Agressão de Stalin-Hitler foi assinado em Moscou. O último obstáculo aos planos de guerra de Hitler foi removido por Stalin. Em 1º de setembro de 1939, o regime nazista invadiu a Polônia. Dois dias depois, o Reino Unido e a França declararam guerra à Alemanha. Vinte e cinco anos após o início da Primeira Guerra Mundial, a Segunda Guerra Mundial havia começado.

Tendo previsto repetidamente a guinada do Kremlin à Hitler, Trotsky não ficou minimamente surpreendido com a traição de Stalin. A União Soviética, advertiu ele, pagaria um preço terrível pela miopia e incompetência de Stalin. A crença do ditador de que ele havia poupado a burocracia soviética dos perigos da guerra com a Alemanha nazista se provaria mais um desastroso erro de cálculo.

Max Shachtman e James Cannon
O início da guerra desencadeou uma crise política dentro da Quarta Internacional que se tornou o foco central do trabalho de Trotsky durante o último ano de sua vida. Esse foco não foi descabido: a sua resposta à fração minoritária do Partido Socialista dos Trabalhadores (SWP) estadunidense liderada por James Burnham, Max Shachtman e Martin Abern foi de importância fundamental não apenas em sua defesa dos fundamentos teóricos do marxismo e do avanço histórico, apesar dos crimes da burocracia soviética, representado pela Revolução de Outubro. A polêmica de Trotsky antecipou muitas das mais difíceis questões de estratégia, programa e perspectiva revolucionária que surgiriam durante e após a Segunda Guerra Mundial.

A assinatura do Pacto Stalin-Hitler, seguida pela invasão soviética da Polônia em meados de setembro de 1939 e da Finlândia (a Guerra do Inverno de 1939-40), provocou indignação entre amplos setores de intelectuais e artistas radicais pequeno-burgueses nos Estados Unidos. Muitos membros desse grande e influente meio social haviam conseguido aceitar e até mesmo apoiar a aniquilação de Stalin dos antigos bolcheviques durante o Terror e o sufocamento da Revolução Espanhola.

Os crimes de 1936-39 ocorreram enquanto o regime stalinista ainda defendia uma aliança internacional entre a União Soviética e as "Democracias Ocidentais". A aplicação doméstica dessa orientação foi a promoção pelos partidos stalinistas de uma aliança, baseada em um programa capitalista, entre as organizações da classe trabalhadora e os partidos políticos capitalistas (a "Frente Popular"). A assinatura do Pacto de Stalin com a Alemanha deu um golpe, de maneira absolutamente cínica e oportunista, nessa forma particular de colaboração de classe. O humor da pequena-burguesia democrática se voltou contra a União Soviética. Na medida em que os intelectuais democráticos identificaram acrítica e falsamente o stalinismo com o socialismo, a guinada contra a União Soviética assumiu um caráter abertamente anticomunista.

Essa mudança política se refletiu no desenvolvimento de uma tendência de oposição dentro do SWP e em outras seções da Quarta Internacional. Os líderes mais importantes dessa tendência dentro do SWP foram Max Shachtman — que foi membro fundador do movimento trotskista estadunidense e, ao lado de James P. Cannon, a figura mais influente do SWP — e James Burnham, professor de filosofia na Universidade de Nova York. Eles insistiram que, como consequência do Pacto Stalin-Hitler e da invasão da Polônia pela URSS, a definição da União Soviética como um estado degenerado de trabalhadores não era mais aceitável. Eles declararam que a União Soviética havia evoluído para uma nova forma de sociedade exploradora, com a burocracia funcionando como um novo tipo de classe governante imprevista na teoria marxista. Um dos termos empregados pela minoria para descrever a sociedade soviética era o "coletivismo burocrático". Um corolário dessa nova avaliação era a rejeição da defesa da União Soviética no caso de uma guerra com um Estado imperialista, mesmo que o adversário fosse a Alemanha nazista.


James Burnham
Para Trotsky, a exigência de Shachtman e Burnham de que a Quarta Internacional revogasse a sua definição da União Soviética como um Estado operário degenerado não era apenas uma questão de terminologia. Quais eram, perguntou Trotsky, as conseqüências políticas práticas da exigência de que a União Soviética não fosse mais definida como um Estado operário?

Vamos admitir por ora que a burocracia é uma nova "classe" e que o atual regime na URSS é um sistema especial de exploração de classes. Quais novas conclusões políticas decorrem dessas definições? A Quarta Internacional reconheceu há muito a necessidade de derrubar a burocracia por meio de uma revolta revolucionária dos trabalhadores. Nada mais é proposto ou pode ser proposto por aqueles que proclamam a burocracia como sendo uma classe exploradora.  [In Defence of Marxism, p. 4]

Porém, a mudança na definição da União Soviética exigida pela minoria do SWP tinha implicações que se extendiam muito além de um esclarecimento de terminologia. A definição estabelecida da URSS como um estado degenerado de trabalhadores estava ligada à demanda por uma revolução política e não social. Sustentando essa distinção havia a convicção de que a derrubada da burocracia stalinista não envolveria uma mudança nas relações de propriedade estabelecidas com base na Revolução de Outubro. A classe trabalhadora, tendo destruído o regime burocrático e restabelecido a democracia soviética, preservaria o sistema econômico baseado na nacionalização da propriedade alcançada através da derrubada da burguesia russa e da expropriação da propriedade capitalista. Essa conquista fundamental da Revolução de Outubro, a base econômica decisiva para o posterior desenvolvimento econômico e cultural da União Soviética, não seria abandonada.

A posição da minoria partia do pressuposto de que não restava nada da Revolução de Outubro que valesse ser salvo. Portanto, não havia motivo para manter a defesa da União Soviética no programa da Quarta Internacional.

Trotsky levantou outra questão decisiva. Se a burocracia representava uma nova classe, que tinha estabelecido uma nova forma de sociedade exploradora na URSS, quais eram as novas formas de relações de propriedade identificadas unicamente com essa nova classe? O "coletivismo burocrático" seria uma expressão historicamente legítima e até mesmo necessária de qual nova etapa do desenvolvimento econômico, além do capitalismo e do socialismo? A Quarta Internacional sustentou que a burocracia usurpou o poder político, que utilizou para adquirir privilégios baseados na nacionalização da propriedade, alcançada através da revolução operária de 1917. O poder ditatorial exercido pela burocracia sob a liderança de Stalin foi o produto da degeneração do Estado soviético sob condições políticas específicas. Essas condições foram, principalmente, o atraso histórico da economia capitalista russa anterior a 1917 que os bolcheviques herdaram, e o longo isolamento político da União Soviética como conseqüência da derrota dos movimentos revolucionários na Europa e na Ásia após a conquista do poder bolchevique na Rússia.

Se essas condições persistissem — isto é, se o isolamento da União Soviética persistisse como conseqüência das derrotas da classe trabalhadora e da sobrevivência a longo prazo do capitalismo nos grandes centros do imperialismo — o Estado operário deixaria de existir. Porém, Trotsky insistiu que o resultado desse processo assumiria a forma da liquidação da propriedade nacionalizada e do restabelecimento das relações de propriedade capitalista. Esse resultado envolveria a transformação de uma seção poderosa dos burocratas, explorando seu poder político para roubar bens estatais, em uma classe capitalista reconstituída. Trotsky havia advertido que esse resultado era uma possibilidade real, que só poderia ser evitada através da revolução política — em conjunto com a revolução socialista nos países capitalistas avançados.


Esse exame cuidadoso do argumento sobre a definição terminológica apropriada da União Soviética permitiu que Trotsky identificasse as implicações históricas e políticas amplas das mudanças do programa levantadas pela oposição do SWP:

A alternativa histórica, levada até as últimas consequências, é a seguinte: ou o regime de Stalin é uma recaída terrível no processo de transformação da sociedade burguesa em uma sociedade socialista, ou o regime de Stalin é a primeira etapa de uma nova sociedade exploradora. Se o segundo prognóstico se mostrar correto, então, é claro, a burocracia se tornará uma nova classe exploradora. Por mais custosa que seja a segunda perspectiva, se o proletariado mundial se mostrasse realmente incapaz de cumprir a missão que lhe foi atribuída pelo curso do desenvolvimento, nada mais restaria, exceto apenas reconhecer que a revolução socialista, baseada nas contradições internas da sociedade capitalista, terminou como uma Utopia. É evidente que seria necessário um novo programa "mínimo" para a defesa dos interesses dos escravos da sociedade totalitária e burocrática.

Entretanto, será que existem dados objetivos tão incontestáveis ou mesmo impressionantes que nos obrigariam hoje a renunciar à perspectiva da revolução socialista? Essa é toda a questão. [In Defence of Marxism, p. 11]

Portanto, o que estava em jogo era a legitimidade histórica de todo o projeto socialista. Seria a aliança de Stalin com Hitler, combinada com a deflagração da Segunda Guerra Mundial, a prova incontestável de que a classe trabalhadora era incapaz de cumprir a tarefa histórica a ela atribuída na teoria marxista? Assim, a disputa com Burnham e Shachtman — e, de fato, com todas as muitas camadas de intelectuais pequeno-burgueses desmoralizados pelas quais eles falavam — articulava-se em torno da questão de saber se a classe operária era uma classe revolucionária, conforme estabelecido por Marx e Engels em seu desenvolvimento e elaboração da concepção materialista da história. A resposta dada por Trotsky a essa questão histórica, que dominou a vida política e intelectual durante os últimos 80 anos, é suficiente, quase por si própria, para estabelecer sua posição como o mais profundo e clarividente pensador político, igualado apenas por Lenin, do século XX. Portanto, é apropriado citar esta passagem na íntegra:

A crise da sociedade capitalista, que assumiu um caráter aberto em julho de 1914, produziu desde o primeiro dia da guerra uma crise aguda na liderança do proletariado. Durante os 25 anos transcorridos desde então, o proletariado dos países capitalistas avançados ainda não criou uma liderança que pudesse se elevar ao nível das tarefas de nossa época. Entretanto, a experiência da Rússia atesta que tal liderança pode ser criada. (Isso não significa, naturalmente, que ela será imune à degeneração). Conseqüentemente, a questão é a seguinte: Será que a necessidade histórica objetiva a longo prazo abrirá um caminho para si própria na consciência da vanguarda da classe trabalhadora; isto é, no processo desta guerra e dos choques profundos que ela gerará, será que uma verdadeira liderança revolucionária será formada, capaz de conduzir o proletariado à conquista do poder?

A Quarta Internacional respondeu afirmativamente a essa pergunta, não somente através do texto de seu programa, mas também através do próprio fato da sua existência. Todos os vários tipos de representantes desiludidos e assustados do pseudo-marxismo avançam no sentido contrário, partindo do pressuposto de que a falência da liderança apenas "reflete" a incapacidade do proletariado de cumprir sua missão revolucionária. Nem todos os nossos opositores expressam claramente esse pensamento, mas todos eles — ultra-esquerdistas, centristas, anarquistas, sem mencionar stalinistas e social-democratas — transferem a responsabilidade pelas derrotas de si próprios para as costas do proletariado. Nenhum deles indica exatamente sob quais condições o proletariado será capaz de realizar a virada socialista.

Se concedermos como verdade que a causa das derrotas está enraizada nas qualidades sociais do próprio proletariado, então a posição da sociedade moderna terá que ser reconhecida como sem esperança. Sob condições de capitalismo decadente, o proletariado não cresce nem numericamente nem culturalmente. Não há, portanto, motivos para esperar que um dia ele suba ao nível das tarefas revolucionárias. De maneira totalmente diferente, o caso se apresenta a aquele que esclareceu em sua mente o antagonismo profundo entre o desejo orgânico, profundo e insuperável das massas trabalhadoras de se libertarem do caos capitalista sangrento, e o caráter conservador, patriótico e totalmente burguês da liderança trabalhista ultrapassada. Devemos escolher uma dessas duas tendências irreconciliáveis. [In Defence of Marxism, p. 14-15]

Nem Shachtman ou Burnham haviam tentado entender as conseqüências de suas perspectivas. Eles sequer eram capazes de prever a sua própria trajetória política de direita e pró-imperialista, muito menos de prever o curso da história mundial. O seu pensamento político era guiado pelo pragmatismo mais vulgar, que consistia em improvisar respostas políticas com base nas impressões cotidianas da "realidade dos acontecimentos vivos", sem tentar colocar os eventos aos quais eles reagiam dentro do contexto histórico mundial essencial. Trotsky chamou a atenção para o seu ecletismo político.

Os líderes da oposição dividem a sociologia do materialismo dialético. Eles dividem a política da sociologia. Na esfera da política, eles dividem as nossas tarefas na Polônia a partir de nossa experiência na Espanha — nossas tarefas na Finlândia a partir de nossa posição na Polônia. A história se transforma em uma série de incidentes excepcionais; a política se transforma em uma série de improvisações. Temos aqui, no sentido pleno do termo, a desintegração do marxismo, a desintegração do pensamento teórico, a desintegração da política em seus elementos constituintes. O empirismo e o seu irmão adotivo, o impressionismo, dominam completamente. [In Defence of Marxism, p. 14-15]

No decorrer dessa polêmica, Trotsky, de uma maneira que certamente supreendeu Burnhan e Shachtman, introduziu a questão da lógica dialética na discussão. Trotsky estava, é claro, ciente do fato de que Burnham descartou a dialética como sem sentido; e que ele desprezava Hegel, que o pomposo professor descreveu estupidamente como "o arquidesordenador centenário do pensamento humano".  [In Defence of Marxism, p. 36] Quanto a Max Shachtman, ele não possuía nenhum interesse particular em assuntos relacionados à filosofia e declarou-se agnóstico sobre a relação do materialismo dialético com a política revolucionária. Nessa situação, não havia trama ou capricho na "guinada filosófica" de Trotsky.

O desenvolvimento de uma perspectiva científica, necessária para a orientação política da classe trabalhadora, exigia um nível de análise de uma situação sócio-econômica e política complexa, contraditória e, portanto, em rápida mudança que não podia ser adquirido com base em uma lógica formal, diluída com impressionismo pragmático. A ausência do método científico, apesar de todas as suas pretensões de especialização filosófica, encontrou expressão grosseira na forma como a análise de Burnham da sociedade e das políticas soviéticas era desprovida de conteúdo histórico e baseada em grande parte em descrições impressionistas de fenômenos visíveis na superfície da sociedade. A abordagem pragmática de senso comum de Burnham para os processos políticos e sócio-econômicos complexos era teoricamente inútil. Ele contrastou a União Soviética existente com aquilo que ele pensava, em termos ideais, que deveria ser um Estado operário genuíno. Ele não procurou explicar o processo histórico e o conflito de forças sociais e políticas, em escala nacional e internacional, que subjaziam a degeneração.

Ele foi criticado duramente por Trotsky:

O pensamento vulgar opera com conceitos como capitalismo, moral, liberdade, Estado de trabalhadores, etc., como abstrações fixas, presumindo que o capitalismo é igual ao capitalismo, que a moral é igual à moral, etc. O pensamento dialético analisa todas as coisas e fenômenos em sua contínua mudança, enquanto determina nas condições materiais dessas mudanças o limite crítico além do qual "A" deixa de ser "A", um Estado operário deixa de ser um Estado operário.

A falha fundamental do pensamento vulgar reside no fato de que ele deseja se contentar com impressões imóveis de uma realidade que consiste no movimento eterno. O pensamento dialético dá aos conceitos, por meio de aproximações, correções, concretizações, uma riqueza e flexibilidade; eu diria até mesmo uma suculência que, em certa medida, aproxima-os dos fenômenos vivos. Não o capitalismo em geral, mas um determinado capitalismo em um determinado estágio de desenvolvimento. Não um estado operário em geral, mas um dado estado operário em um país atrasado, sob um cerco imperialista, etc.

O pensamento dialético está relacionado ao pensamento vulgar, da mesma forma que um filme está relacionado a uma fotografia. O cinema não proíbe as fotografias paradas, mas as combina de acordo com as leis do movimento. A dialética não nega o silogismo, mas nos ensina a combinar os silogismos de modo a aproximar nosso entendimento da realidade que muda eternamente. Hegel em sua Lógica estabeleceu uma série de leis: mudança de quantidade em qualidade, desenvolvimento através de contradições, conflito de conteúdo e forma, interrupção de continuidade, mudança de possibilidade em inevitabilidade, etc., que são tão importantes para o pensamento teórico quanto o simples silogismo para tarefas mais elementares. [In Defence of Marxism, p. 65]

Trotsky pertencia àquela categoria rara de grandes escritores que buscavam e eram capazes de expressar as idéias mais profundas em linguagem acessível. Mas ele não alcançava clareza às custas da profundidade intelectual. Ao contrário, a clareza é uma manifestação do seu domínio das questões teóricas essenciais.

Também é válido notar que essa passagem revela uma confluência marcante da concepção de Trotsky e Lenin da lógica dialética. Em seu Resumo de A Ciência da Lógica de Hegel (que compõe uma parte dos Cadernos Filosóficos de Lenin no Volume 38 da coletânea de obras do líder bolchevique), Lenin, comentando sobre Hegel, escreveu:

A lógica é a ciência da cognição. É a teoria do conhecimento. O conhecimento é o reflexo da natureza pelo homem. Porém, esse não é um reflexo simples, não imediato, não completo, mas o processo de uma série de abstrações, a formação e o desenvolvimento de conceitos, leis, etc. e esses conceitos, leis, etc. (pensamento, ciência = "a idéia lógica") adotam condicionalmente, aproximadamente, o caráter universal governado por leis da natureza em movimento e desenvolvimento eternos. Aqui existem realmente, objetivamente, três membros: 1) natureza; 2) cognição humana = o cérebro humano (como o produto mais elevado dessa mesma natureza), e 3) a forma de reflexão da natureza na cognição humana, e essa forma consiste precisamente de conceitos, leis, categorias, etc. O homem não pode compreender = refletir = espelhar a natureza como um todo, em sua completude, sua "totalidade imediata", ele só pode se aproximar eternamente disso, criando abstrações, conceitos, leis, um quadro científico do mundo, etc., etc. [Lenin Collected Works, Volume 38 (Moscow: 1961), p. 182]

Em abril de 1940, a minoria rompeu com o SWP e criou o seu "Partido dos Trabalhadores". Burnham permaneceu em suas fileiras por pouco mais de um mês. Em 21 de maio, ele enviou uma carta de demissão à organização que ele havia co-fundado com Shachtman, na qual ele anunciou seu total e absoluto repúdio ao socialismo. Tirando as conclusões finais da sua rejeição do materialismo dialético, Burnham escreveu: "De todas as opiniões importantes que tem sido associadas ao movimento marxista, seja em suas variedades reformistas, leninistas, stalinistas ou trotskistas, não há praticamente nenhuma que eu aceite em sua forma tradicional".[In Defence of Marxism, p. 257] 

 Ao saber da deserção do teórico da oposição, Trotsky escreveu ao seu advogado (e membro do SWP), Albert Goldman, "Burnham não reconhece a dialética, mas a dialética não permite que ele escape de sua rede. Ele é preso como uma mosca em uma teia". [In Defence of Marxism, p. 224]

Ronald Reagan premiando James Burnham com a Medalha Presidencial da Liberdade, 1983.

Após o seu abandono do Partido dos Trabalhadores, Burnham atravessou rapidamente para a extrema direita da política burguesa, tornou-se um defensor da guerra nuclear preventiva contra a União Soviética, e, pouco antes de sua morte em 1987, foi agraciado com a Medalha da Liberdade pelo Presidente Ronald Reagan. A evolução de Shachtman foi mais longa. O seu "Terceiro Campo" foi definido pelo slogan "Nem Washington nem Moscou". Eventualmente, Shachtman abandonou a sua proibição de apoio a Washington e tornou-se um defensor da Guerra Fria travada pelos Estados Unidos, o que acabou implicando no total apoio à Invasão da Baía dos Porcos em 1961 e, mais tarde na mesma década, ao bombardeio do Vietnã do Norte.


Por David North
Setembro 2020

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