domingo, 27 de junho de 2021

O Estado Novo em Portugal, o controle da imprensa e a Guerra Colonial

 
 Em entrevista concedida a Tânia Alves[1]
CONHECER O PAPEL DA IMPRENSA, UTILIZADA  COMO INSTRUMENTO DE SUSTENTAÇÃO DO GOVERNO SOB CONTROLE DAS FORÇAS GOLPISTAS NO ESTADO NOVO PORTUGUÊS, É FUNDAMENTAL PARA COMPREENDER UMA DAS DIMENSÕES DO MOMENTO FASCISTA POR QUE PASSA O BRASIL.
No diálogo mantido, retomamos um dos temas mais relevantes na investigação de José Tengarrinha – a imprensa e o controlo exercido pelo aparelho ideológico do Estado, a actividade censória e a política de propaganda levada a cabo pelo regime de Salazar, restringindo a nossa abordagem ao início da década de 1960. A obsessão do Estado Novo com a mística imperial, a sua reacção aos confrontos armados entre os grupos de nacionalistas angolanos e as forças militares portuguesas, e a postura da sociedade portuguesa em geral e das camadas oposicionistas em particular face a estes acontecimentos foram alguns dos tópicos que nortearam esta conversa. José Tengarrinha partilhou algumas memórias da sua própria vivência e participação nesses acontecimentos e teceu considerações relevantes acerca da concepção do regime sobre os media, em especial sobre a imprensa, e sobre o conturbado início do fim do Império Colonial Português em África.
Uma questão de grande relevo para compreender a informação publicada durante o Estado Novo, em Portugal, e que será o eixo desta conversa, prende-se com a visão que Salazar tinha dos media. Centremo-nos aqui no caso particular da imprensa. A perspectiva corrente remete para uma ideia de controlo da imprensa, de o regime a usar para manter o poder. O que nos pode dizer da visão de Salazar sobre a imprensa e da relação que o seu regime estabeleceu com ela?
JT) No início, um dos principais objectivos do Estado Novo foi tentar criar uma corrente de opinião pública que lhe fosse favorável. Ao menos uma maioria silenciosa, passiva, já que se antevia muito difícil conseguir um amplo apoio activo, como em alguns governos fascistas europeus que tiveram considerável suporte das massas. Com essa finalidade, criam-se jornais que lhe são totalmente servis, como o Diário da Manhã (órgão oficial do Governo), além de contar com outros, oficiosos, como o Diário de Notícias (quando dirigido por Augusto de Castro), O Século (sob a direcção de João Pereira da Rosa), o Novidades (órgão oficioso da Igreja, muito conservador) ou A Voz (católico e monárquico), bem como, no Norte, o Comércio do Porto, também apoiante oficioso. Podemos considerar terem sido estes, então, os principais diários que, mais ou menos entusiasticamente, foram suportes do Estado Novo.

Mas a visão seria muito incompleta se não houvesse em conta a ampla rede de jornais da província, com posições muito diversas: uns, declaradamente apoiantes do regime, outros, aparentemente neutrais, ocultando o seu pendor político, e outros, ainda, onde se vislumbrava um tímido distanciamento. No capítulo de um livro que escrevi sobre a imprensa e a opinião pública em Portugal, analisei os jornais que então circulavam na província[2]. Aqueles que eram favoráveis e aqueles que eram menos favoráveis a Salazar. A análise teve por base os relatórios da censura, fazendo uma abordagem geral não apenas daqueles grandes jornais mais conhecidos e cuja posição ideológica era facilmente detectada, mas também de todas aquelas dezenas de pequenos periódicos da província que estavam amordaçados ou “comprados” por Salazar, ao lado dos que eram voluntariamente órgãos de propaganda do Estado Novo. Uma informação minuciosa que abrangeu todo o País.

As tentativas de Salazar de criar uma opinião pública favorável através dos jornais exigiam meios legais e instrumentos de intervenção adequados, que só foram criados em 11 de Abril de 1933 com a entrada em vigor da Constituição e a reorganização da censura prévia (instituída informalmente durante a ditadura militar que se seguiu à revolução do 28 de Maio de 1926). Nos próprios termos da Constituição de 1933 considerava-se a opinião pública “elemento fundamental da política da administração do País” (Tt. VI, Art. 22º). Mas esta “opinião pública” concebida pelo Estado Novo nada tinha a ver com a formação complexa de um “espaço de opinião” onde livremente se confrontassem ideias. Era tão-somente a tentativa de constituir um “bloco de opinião nacional” ao serviço dos interesses dos governantes com o objectivo último de forjar o “espírito nacional”.

É ao serviço deste objectivo que se cria o Secretariado de Propaganda Nacional (SPN), directamente vinculado à Presidência do Conselho, com a expressa função de “integrar os portugueses no pensamento moral que deve dirigir a Nação” ou, ainda mais explicitamente, de divulgar o “espírito de unidade que preside à obra realizada e a realizar pelo Estado Novo”, visando assim “o consenso da sociedade portuguesa em torno do ideário do regime “ e a “defesa da opinião pública contra tudo que possa desviá-la do sentido da verdade, da justiça e do bem comum”. Com esse fim, o SPN, sob a direcção de António Ferro, aponta em duas direcções: “combater por todos os meios quaisquer ideias perturbadoras e dissolventes da unidade e do interesse nacional” e “regular as relações da Imprensa com os poderes do Estado”, exercendo uma vigilância permanente sobre os jornais. É a viragem fundamental em que a Informação (em sentido lato) passa a estar ao serviço da Propaganda. A articulação entre essas vertentes é feita pelo Gabinete de Coordenação dos Serviços de Propaganda e Informação criado em 19 de Março de 1940 que integra o SPN, o director dos Serviços de Censura e o presidente da Comissão Administrativa da Emissora Nacional. Pretendia-se, assim, “assegurar a coordenação dos serviços públicos em matéria de propaganda e informação, atendendo a que as novas condições derivadas da guerra na Europa impõem o estabelecimento, através da Presidência do Conselho, do mais estreito contacto entre os organismos existentes e aqueles fins”. Assim, a intervenção dos diversos serviços encarregados da propaganda e controlo da informação passavam a estar sob a supervisão directa de Salazar, deixando a censura de estar tão estritamente subordinada ao Ministério do Interior e passando mais a depender, na prática, do Presidente do Conselho, que dirigia as reuniões do Gabinete.

Até princípios da década de 1950 decorre o período mais pujante de afirmação do regime, que consegue algum êxito na criação de uma opinião pública favorável entre as classes superiores e médias. Por iniciativa do SPN, sobretudo, são promovidas múltiplas actividades em que participam algumas figuras destacadas da intelectualidade portuguesa. É a fase mais bem-sucedida da doutrinação do regime. Nesse sentido, foi habilmente desenvolvida, através de diversos meios, a defesa e propagação de valores conservadores e nacionalistas que procuravam moldar a mentalidade pública, identificando-a com a essência ideológica do regime. Mas, globalmente, os resultados são escassos e pouco duradouros.

Que elementos principais caracterizam a fase seguinte?

JT) Em face destas reconhecidas limitações, inicia-se uma nova fase: a “propaganda” deixa de figurar como objectivo central expresso, ao serviço da qual tinha estado a “informação”. Para tal, institui-se (23 de Fevereiro de 1944) o Secretariado Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo (vulgarmente designado por S.N.I.) que reforça a direcção de Salazar sobre os serviços de censura. Com isto, para além da intenção de combater as opiniões contrárias, pretendia-se que a informação visasse apresentar o regime como o único espaço de identificação com o “espírito nacional”. Mas tentar captar os favores da Imprensa para esta tarefa “patriótica” e ao mesmo tempo reprimi-la era, obviamente, inconciliável.
Com o início da II Grande Guerra (1939) a censura é ainda mais apertada com a justificação de haver informações militares que deviam ser ocultadas, como aliás acontecera durante a I. República aquando da guerra de 1914-18. Chega-se ao fim da guerra com o mundo dividido, a Europa e o mundo confrontando-se numa agressiva Guerra Fria entre dois grandes blocos: a União Soviética (com os seus satélites) e as democracias Ocidentais.

Neste quadro convulsionado era preciso, acima de tudo, impedir a propagação de ataques aos grandes valores formativos da identidade nacional: Pátria, Religião, Família. Pretendia-se que estes valores ideológicos em que assentava de uma forma profundamente reaccionária e conservadora o Estado Novo fossem transmitidos pela Imprensa, como principal instrumento desta estratégia. Mas, para isso, nem os métodos coercivos permitiram atingir satisfatoriamente esse objectivo.

Desfeita a ilusão de Salazar de que era possível construir a unidade nacional em torno do Estado Novo, a Guerra Fria permite reforçar os argumentos para que ele persiga os opositores com a justificação de serem comunistas, o que também agradaria ao Ocidente, e aperte ainda mais duramente as malhas da censura. Assim se vai caminhando desde meados da década de Quarenta aos princípios da década de Cinquenta, ao mesmo tempo que no País cresce o mal-estar social e político. Mal-estar que rebenta, primeiro, na campanha eleitoral para a presidência da República do opositor general Norton de Matos, em 1948, que levanta uma mobilização popular de grande dimensão. Mas, sobretudo, com as eleições, em 1958, do general Humberto Delgado (que seria assassinado pela polícia política), com o levantamento nas ruas das cidades de todo o País de dezenas de milhares de populares exigindo o fim da ditadura. Estreitava-se o caminho de Salazar e do Estado Novo. E sublinho Salazar porque, na verdade, em termos de informação, como aliás em tudo o resto, era ele quem mandava. Através do exame do seu arquivo (no IAN/ TT) verificámos que tudo lhe passava pelas mãos. Não todos os artigos publicados na Imprensa, obviamente. António Ferro era o homem do regime que era disso encarregado, uma espécie de Goebbels em Portugal. O que Goebbels era para Hitler, António Ferro era para Salazar, a respeito da Imprensa e da Informação em geral.

Era já perceptível, porém, que aquela contenção, aquele maior estrangulamento que ele impunha aos jornais e à divulgação do pensamento em geral não podia subsistir por muito tempo. Criava-se, cada vez mais, a consciência de que este era, de certo modo, o declive final do regime. O pequeno êxito conseguido desde os meados dos anos 30 até os meados dos anos 50, conseguindo alguma captação nas camadas médias urbanas e até de alguns intelectuais, inverteu-se. A intelectualidade - e sobretudo as novas camadas (escritores, pintores, músicos…) – com as suas obras perseguidas, abafadas, apreendidas, e muitos deles presos, levantou-se massivamente contra a ditadura.


É evidente que isto implica da parte de Salazar o reforço dos meios persecutórios (com destaque para a polícia política) e também censórios. Nas províncias, era nos governos civis que estavam localizados os gabinetes de censura distritais. Mas não dispunham, para isso, de meios humanos em número e qualificação suficientes para suster toda aquela crescente onda opositora. Assim eram considerados depreciativamente mesmo por Salazar, por António Ferro, pelos serviços do Secretariado Nacional de Informação (SNI). Em alguns relatórios António Ferro queixava-se expressamente da capacidade dos serviços de censura levarem a cabo essa tarefa tão necessária, tão estritamente necessária que era a de impedir a divulgação daquilo que ele denominava “ideias subversivas”. Em grande parte devido à incultura dos censores. Os censores, desde a ditadura militar, portanto, desde o 28 de Maio, eram normalmente militares de patentes médias (capitães e majores) sem cultura suficiente para poder desempenhar satisfatoriamente as recomendações que vinham do SNI e os desejos que o próprio Salazar tinha de limitar a divulgação das ideias “dissolventes”.
As histórias que se contam sobre isto são inúmeras e até em tal excesso que o estudo e a análise dos conteúdos e das orientações centrais das censuras no tempo de Salazar ficaram em grande parte submersos sob o abundante anedotário acerca do trabalho dos censores. Por exemplo: na revista Seara Nova frequentemente comentávamos e transcrevíamos alguns textos assinados por “Carlos Marques” ou “Ulianov” sem que eles se apercebessem de que se tratava de Karl Marx e de Lénine. Aliás, quando faziam buscas em bibliotecas particulares era frequente levarem livros de Lenine, de Staline e de … Racine. Num assalto que fizeram à minha biblioteca apreenderam A Paz de Aristófanes, autor que constava dos ficheiros da polícia como muito suspeito.

Alteraram-se as circunstâncias com o início da guerra em Angola a partir de 1961?

JT) Com efeito, as circunstâncias mudam radicalmente quando começa a desmoronar-se o Império. Primeiro, foi a ocupação pela União Indiana dos enclaves de Dadrá e Nagar-Aveli, depois a eclosão da guerra independentista em Angola em princípios de 1961 e, em Dezembro desse mesmo ano, a invasão de Goa, Damão e Diu pela União Indiana, a que se seguem os levantamentos dos movimentos de libertação em Moçambique e na Guiné. Crescia a consciência de que, embora lutasse desesperadamente, com grandes sofrimentos para o povo português, eram insuficientes os meios de que o regime dispunha para enfrentar as guerras coloniais. Verifica-se também, por outro lado, a falta de solidariedade das democracias ocidentais e, mesmo, o apoio activo de algumas delas, e até do Vaticano, aos movimentos de libertação.

Entretanto, enfrentando dificuldades de tal monta, vinham a acentuar-se as clivagens no seio do próprio regime, pelo que Salazar se vê na necessidade de proceder a mudanças cosméticas no governo. Mas os acontecimentos precipitam-se e não permitem grande margem de manobra. Dois dos casos que então tiveram maior repercussão foi o assalto pelas forças oposicionistas ao paquete “Santa Maria”, em navegação no Atlântico até à chegada ao Brasil, e a tomada de um avião da TAP que sobrevoou Lisboa lançando milhares de panfletos contra o regime. Tanto um como o outro caso foram tão espectaculares e tiveram tal repercussão internacional que não podiam ser silenciados pela Imprensa portuguesa. Então, a censura enviou para os jornais “notas oficiosas” sobre estes acontecimentos com a obrigatoriedade de serem publicadas na primeira página e exigindo que os seus autores fossem apelidados de “piratas” e “terroristas”. Eu era então chefe da redação do Diário Ilustrado e, sem autorização, publiquei na primeira página o texto integral do panfleto não acompanhado das “notas oficiosas” (edição disputadíssima), o que nos custou uma pesada multa, ameaça de suspensão do jornal e de prisão do chefe da redacção. Não fui preso nessa altura, mas pouco depois, em Dezembro, e sujeito a torturas.
Entre 1961 e 1974, 100 mil jovens abandonaram Portugal para fugir à guerra colonial
Registemos, ainda, dois acontecimentos relevantes e muito significativos. Nas “eleições” de 1961, a Oposição apresenta-se concertada em Lisboa, com lista única, que reunia pessoas afetas ao Centro Democrático Social, a que pertenciam os que vinham da I República, os republicanos chamados “históricos”, e também alguns católicos e pessoas próximas do Partido Comunista, o que era um facto notável pelo seu ineditismo. Nessas “eleições” de 1961 um outro facto merece destaque: pela primeira vez em campanha política a Oposição abordou publicamente a questão colonial, embora com alguma prudência. Foi num comício, num teatro de Lisboa, em que um dos oradores se referiu à guerra colonial como uma questão que devia ser resolvida politicamente, através de conversações políticas e não por meios militares. Nas campanhas eleitorais seguintes os oradores oposicionistas nas reuniões públicas foram absolutamente proibidos de abordar a questão colonial, sob pena de prisão. O que aconteceu comigo.
A guerra colonial era então a dificuldade crucial que o regime enfrentava. Desde 1954, quando foi evidente o início da decadência do domínio imperial, a atenção do regime orientou-se prioritariamente para a defesa do “Império Português”. Desencadeou um intenso debate ideológico, com base na “inquestionável” preservação da “Pátria una e indivisível”, na glorificação dos navegadores portugueses e dos exploradores das terras africanas, na acção proselitista dos portugueses expandindo a religião cristã através dos missionários (que recebeu activo apoio da Igreja), na tentativa mistificadora de fazer crer que o pequeno território continental português não poderia sobreviver sem as colónias. Foi uma intensa campanha ideológica que teve como seus instrumentos mais eficazes os manuais escolares, os púlpitos das igrejas, a doutrinação por múltiplos meios, além da Imprensa, procurando levantar a opinião pública a favor da “defesa da integridade do território nacional”. No princípio da guerra colonial, a campanha conseguiu captar algumas franjas da opinião pública, sobretudo urbanas. Mas à medida que aumentavam os mortos na guerra (cujos corpos chegavam às aldeias com grandes manifestações de revolta popular) e os avultados investimentos militares provocavam um insuportável agravamento do custo de vida, o regime entrou numa desesperada atitude defensiva, que contrastava com alguma inicial euforia e optimismo que, anos antes, tivera a sua maior expressão na Grande Exposição do Mundo Português (Junho de 1940), no quadro das comemorações centenárias da fundação da nacionalidade e da Restauração.

Nestas circunstâncias, o governo tentava, sem êxito, o apoio da Imprensa, amordaçando-a, endurecendo a pressão censória, obrigando os jornais a publicar nas primeiras páginas as “notas oficiosas” laudatórias dos “êxitos” do regime e das suas vitórias sobre os movimentos de libertação. Em que ninguém acreditava. E esse descrédito significava o fracasso total do sonho de formar um “bloco de opinião” como expressão do “espírito nacional”.

Há pouco referiu-se a um orador que abordou publicamente pela primeira vez a Guerra Colonial como questão que deveria ser resolvida politicamente. Quem era esse orador? Que significado lhe atribui?

JT) Foi um advogado pertencente à corrente socialista (ainda não havia Partido Socialista) chamado Olindo Figueiredo. Isso está descrito num ensaio meu intitulado “Os Caminhos da Unidade Democrática contra o Estado Novo” publicado na Revista de História das Ideias da Universidade de Coimbra. Aí, analiso o enquadramento político do Estado Novo e as dinâmicas da Oposição nesse período.

Era cada vez mais visível a incapacidade do governo de controlar o avanço da Oposição democrática. Tratava-se de uma verdadeira vaga de fundo, que por vezes parecia anunciar um período pré-insurreccional. Multiplicavam-se as conspirações militares e civis, algumas delas, detectadas pela Pide, resultando em prisões. E, no final de 1961, ocorre o assalto ao quartel de Beja, que pretendia ser o início de um levantamento militar nacional encabeçado pelo general Humberto Delgado, que entretanto havia entrado clandestinamente em Portugal. Fracassado, provoca uma forte vaga repressiva. São presas dezenas de pessoas, entre as quais me incluí.
Estive metido mais de dois meses na tenebrosa cadeia do Aljube, numa das celas de dimensões mínimas denominadas “curros”, sem luz, chamado frequentemente para interrogatório e torturado com diversos meios, normalmente muito violentos.
Essa violenta vaga repressiva causou considerável perturbação nas forças oposicionistas, que perderam muitos dos seus dirigentes, presos ou até assassinados, como foi o caso do escultor José Dias Coelho. Mas isso não impediu que logo em Maio seguinte, em 1962, tivesse havido um grande levantamento popular em Lisboa e também no Porto, mas sobretudo em Lisboa.

E pouco depois irrompe o movimento de protesto dos estudantes…

JT) Sim, exatamente. O forte e muito amplo movimento protestativo dos estudantes tinha um importante duplo significado: por um lado, evidenciava que os jovens se levantavam muito energicamente contra todas as opressões da ditadura e a guerra colonial (eram os primeiros a ser mobilizados) e, por outro lado, dado o seu estatuto social, mostrava que as classes médias, além dos trabalhadores (que se manifestavam em greves cada vez mais frequentes), durante algum tempo parecendo adormecidas, engrossavam a vaga oposicionista. Embora dispersas, as forças democráticas reactivavam-se num ambiente tão global que até levava a pensar encontrarmo-nos numa fase pré- insurrecional. E digo pré-insurrecional, porque admitíamos estar a entrar numa fase nova em que para derrubar a ditadura era preciso empregar novos meios, novos instrumentos. Que as gritarias e os panfletos não chegavam. Há até dentro do próprio Partido Comunista um duro debate sobre isso, que leva a cisões dentro do Comité Central, porque alguns queriam que se entrasse numa luta de acção directa, não apenas com ideias e discursos, mas com armas.

Quem é que no Partido Comunista advogava essa posição?

JT) O Francisco Martins Rodrigues[4] liderou essa estratégia que defendeu no congresso do PCP que então se realizou clandestinamente, pelo que foi expulso.

Esse é um período crucial, se o regime não se tivesse mantido, teriam existido outras margens para a resolução do problema colonial …

JT) Certamente. Mas a verdade é que não se derrubou. E depois, a frio, chegou-se à conclusão de que não havia condições objectivas para seguir a estratégia da luta armada, algo aventureira, que culminaria, inevitavelmente, numa sangrenta derrota. O governo agravava os seus meios repressivos através da polícia política, da censura, de prisões, de perseguições pessoais, obrigando os patrões a despedir os oposicionistas (a que muitos patrões resistiram) e de outros variados meios.

Mas havia, ainda assim, tentativas de os jornalistas contornarem a censura, digamos assim… No momento em que se inicia a Guerra em Angola, com o assalto às cadeias de Luanda, a 4 de Fevereiro de 1961, nos jornais verifica-se que praticamente só aparecem os comunicados muito curtos do Governo e as declarações do governador-geral de Angola. Mas quando se lê no Diário de Lisboa esse primeiro comunicado do governo de Angola está colocado justamente no centro da primeira página, como se chamasse a atenção para algo especialmente relevante. Um quadradinho no centro é certamente a tentativa de os jornalistas salientarem um problema muito sério…

JT) Claro, claro. Há vários livros sobre a censura salazarista em que se vê mesmo os artigos que foram censurados. O Notícias da Amadora, publicou vários…. Bem, isto processava-se da seguinte maneira. Nessa altura não havia computadores e muito raras máquinas de escrever nas redações dos jornais, era tudo escrito à mão e depois seguia para a tipografia. As provas tipográficas é que eram enviadas para a censura. Os censores liam-nas, riscavam com lápis azul o que achavam contrário ao regime. Depois reenviavam-nas para as redacções. Enquanto não viesse de novo o artigo censurado, nada podia ser publicado. Era uma dupla forma de controlo porque, por um lado, eles tinham, de facto, o poder de riscar aquilo que queriam e, por outro lado, podiam demorar as provas o tempo suficiente para que se perdessem as ligações com as províncias. No caso por exemplo do República, que tinha uma expansão bastante razoável na província, através de correspondentes em todo o País, precisávamos de apanhar camionetas, comboios que levassem os jornais para outros locais, mas muitas vezes eles retinham as provas o tempo suficiente para garantir que o jornal já tinha perdido as comunicações. O que causava, como é óbvio, grandes prejuízos para o jornal.

Como é que o mecanismo de censura procurava ocultar as marcas dos cortes nos artigos?
JT) No jornal República, onde trabalhei vários anos, fazíamos o seguinte: enviávamos as provas para a censura, a censura riscava aquilo que queria e, quando entendia, mandavam-nas. Nós tínhamos que ter sempre material preparado para preencher os cortes, porque também era objecto de multa se deixássemos espaços em branco. Ou se nós, e utilizando aqui um termo tipográfico, escareássemos, o que acontecia às vezes. Sabe o que é escarear? Por vezes acontecia que a censura demorava e, quando a sua decisão chegava, já estava o molde em chumbo pronto a entrar na impressora e nós não podíamos refazer tudo de início. Portanto, destruíamos aquelas linhas que tinham sido censuradas. A isso chamava-se escarear. E claro que era, como dissemos, sujeito a penalizações porque o leitor entendia ter havido intervenção da censura.

Outras vezes púnhamos em grande relevo notícias do estrangeiro sobre acontecimentos idênticos aos nacionais que estávamos proibidos de noticiar. Por exemplo, quando da crise dos estudantes em Portugal publiquei na primeira página com grandes caracteres cobrindo grande parte da página, durante vários dias, os tumultos dos estudantes na China...

A paginação era, também, uma das formas utilizadas para iludir a censura, colocando em maior destaque as notícias que mostravam aspectos desfavoráveis do regime, como antes referi no caso do Diário de Lisboa. Porque, em princípio, apenas os textos eram enviados aos censores. Mas, quando estes tinham desconfiança, obrigavam-nos a enviar-lhes provas de página, o que atrasava a saída do jornal. São inumeráveis os subterfúgios que utilizávamos para iludir a censura, embora nem sempre com êxito.

A censura intervinha na escrita do texto propriamente dita, para além da operação de corte – que por si só é já, claro, uma intervenção… - mas, por exemplo, ela sugeria substituições de palavras?

JT) Com frequência sugeria sim, mas nós, em geral, procurávamos não respeitar as “sugestões” da censura, era uma espécie de jogo do gato e do rato…

O governo de Salazar tinha alguma estrutura que obrigasse a colocar certos conteúdos nos jornais?

JT) Tinha um gabinete, precisamente no Secretariado Nacional de Informação, encarregado de distribuir comunicados, artigos e textos vários aos jornais da província que mostravam não serem frontalmente contrários ao regime. Isso também convinha a alguns desses jornais, independentemente das suas ideologias, quando tinham falta de recursos para contratar redactores em número suficiente.

Terão as redações sofrido mudanças na sua composição?

JT) Sim. Camadas mais jovens, desde meados da década de 1950, entraram em vários diários. Já a campanha de Humberto Delgado, em 1958, é coberta com estas redacções renovadas. Entram o Jacinto Baptista, Baptista Bastos, Carlos Veiga Pereira, Alfredo Noales Rodrigues, António Borges Coelho, Nuno Vieira, eu próprio, além de outros. Substituíamo-nos à geração anterior, rotineira, sem imaginação, em geral louvaminheira do regime, salvo muito raras excepções.

Depois há os correspondentes que são enviados para Angola para fazer a cobertura da guerra. Quem são eles? Como são escolhidos?

JT) É muito difícil perceber a posição ideológica deles quando nada se podia escrever livremente. O que escreviam sobre as guerras e a situação nas colónias era dominado pelo imperativo da defesa da integridade do território nacional imposto pelo governo. Além de que os jornalistas enviados eram já escolhidos de acordo com a sua manifesta afeição ao regime.
Por exemplo, os correspondentes do Diário de Notícias foram sempre escolhidos entre os mais fervorosos apoiantes do regime, sendo este jornal de uma linha muito conservadora. O mesmo se passou com O Diário Popular, sobretudo quando foi dirigido por Francisco da Cunha Leão e o embaixador Martinho Nobre de Melo. Portanto, os enviados desses jornais, convictamente ou não, mostravam-se incondicionais salazaristas. Quanto aos jornais não comprometidos como o Diário Ilustrado ou o República de Lisboa, ou o Jornal de Notícias do Porto entre outros, nunca enviaram correspondentes às colónias. Para quê? Nem valia a pena... Além disso, havia os correspondentes de lá que enviavam para as redacções em Lisboa notícias que não nos mereciam qualquer crédito.

Como o correspondente de Angola Ferreira da Costa...

JT) Esse Ferreira da Costa era execrável… Tinha um programa na rádio contra o Comunismo, em que usava os argumentos mais primários e soezes. Ele e outros usavam este tipo de propaganda contra o comunismo por considerarem ser a forma mais eficaz de tentar unir forças em torno do regime, ameaçado pelos que punham em causa os valores essenciais da tradição portuguesa. A verdade é que esse tipo de propaganda primária anticomunista ficou de tal modo incrustado na mentalidade popular que ainda hoje é usado com algum êxito pelos políticos conservadores.

Como evoluíram as relações do regime do Estado Novo com as mudanças do cenário internacional?

JT) O regime tinha de ganhar a simpatia dos políticos ocidentais. Aqui, distinguem-se duas fases. No cume da Guerra Fria (após o fim da guerra até meados dos anos 1950), as democracias ocidentais admitiam e até apoiavam o regime ditatorial de Salazar, porque ele se apresentava como estrénuo defensor da civilização ocidental contra o perigo comunista. Daí, a existência então de alguma, digamos, “simpatia”, ou melhor, de uma não hostilização do Ocidente contra a ditadura de Salazar. Simplesmente as coisas alteraram-se, sobretudo, a partir do XX Congresso do PCUS com o relatório de Khrushchev que foi publicado em todos os jornais sem censura. Claro, o relatório era uma denúncia dos crimes de Estaline, o que convinha à propaganda anticomunista. E então verificou-se uma alteração na cena internacional, pois Khrushchev no seu relatório e no pensamento que imprimiu à política externa da União Soviética admitia a relação pacífica entre sistemas sociais opostos. Admitia que eram conciliáveis, que era possível a coexistência entre o sistema capitalista e o sistema socialista.

Portanto, a partir daí, Salazar fica entalado, porque uma das grandes justificações que tinha para reprimir tão furiosamente a oposição era denunciando-a como comunista. Ficava do outro lado da barreira. Ora a partir da altura em que se admitia a coexistência pacífica entre os dois sistemas perdia-se uma parte da justificação para que Salazar continuasse a desencadear uma ofensiva tão furiosa contra o Comunismo Internacional. E, a partir daí, começa a acentuar-se um certo isolamento de Salazar mesmo em relação às democracias Ocidentais. Então, inclusive nas Nações Unidas, foram feitas algumas fortes acusações contra as guerras coloniais conduzidas por Portugal; no mesmo sentido se pronunciou o presidente dos EUA, John Kennedy, o Papa recebeu os representantes dos movimentos de libertação, isto é, por parte das democracias ocidentais, um afastamento cada vez maior relativamente à política colonial de Salazar.

Um jornalista português nessa altura recebia certamente jornais do estrangeiro. Alguns deles já reportavam as situações que se passavam em Angola com um sentido e um enquadramento bem diferentes do que era difundido pela imprensa portuguesa. Que papel terão jogado os media estrangeiros para a imprensa – e também para o regime – em Portugal?

JT) Sim, claro, embora muito frequentemente fosse impedida a sua entrada e a distribuição no País. Por isso, muitas vezes esses jornais entravam clandestinamente, sobretudo quando tinham notícias mais salientes contra as guerras coloniais. Os próprios correios estavam avisados de que era preciso apreender certos jornais estrangeiros. Isso não impedia que muitos conseguissem entrar, como Le Monde, que era o mais lido aqui pela Oposição, publicando frequentemente não só notícias sobre a guerra colonial como também as manifestações e protestos internos contra o regime, bem como prisões e assassinatos pela polícia política portuguesa. Muitas das notícias que recebíamos sobre a situação colonial chegavam-nos por esse jornal. Também, com muita frequência, alguns jornais estrangeiros, que conseguiam escapar ao crivo dos correios, eram apreendidos nas bancas de venda.

Salazar teria uma orientação para a imprensa internacional?

JT) Sim... E desde os anos 1950 não foram poucos os correspondentes estrangeiros perseguidos, vigiados, ameaçados, até obrigados a sair do País. Apesar disso, alguns mantinham-se, gozando por vezes da tolerância da polícia, por também publicarem nos seus jornais despachos favoráveis. Entre estes, por exemplo, contava-se a correspondente do New York Times, Marvin, que frequentava normalmente os círculos da Oposição. Quanto aos jornais que publicavam por vezes notícias desfavoráveis à ditadura, como Le Monde e L’Humanité, entravam com muitas precauções e os seus contactos com a Oposição eram muito reservados. Durante o governo de Salazar foi sempre assim. A excepção foi as conferências de Imprensa que frequentemente eram promovidas pelo governo no Secretariado Nacional da Informação para os correspondentes estrangeiros credenciados em Portugal. O objectivo principal, diria quase exclusivo, era tentar justificar a guerra colonial. Não se pode negar terem tido algum efeito, sobretudo quando essas conferências passaram a ser dirigidas pelo hábil ministro dos Negócios Estrangeiros, Franco Nogueira, desde meados da década de 1960.

Quanto ao sucessor de Salazar, Marcelo Caetano, teve uma política de informação muito diferente, como já tive ocasião de analisar[5]. Caetano tinha a consciência mais clara do valor dos meios de comunicação nas sociedades modernas, sabia manejar mais habilmente a Informação e, sobretudo, percebeu a importância da Televisão (o que nunca aconteceu com Salazar) sobretudo quando iniciou a série das “Conversas em Família”.

A questão da guerra colonial adquire uma importância muito grande porque o regime considera a manutenção do sistema colonial um facto absolutamente fulcral. Como vê este processo?

JT) O slogan do “Portugal uno e indivisível” era constantemente repetido para justificar a manutenção das colónias. Como dissemos atrás, insistia-se na ideia de que Portugal dificilmente sobreviveria sem as colónias. Além das já referidas ocupações dos enclaves indianos de Dadrá e Nagar-Aveli, até então sob ocupação portuguesa, o que mais abalou Salazar (após o início da guerra em Angola) foi, em Dezembro de 1961, a invasão de Goa, Damão e Diu, o que significava o fim da “India portuguesa”, a que estavam ligados alguns dos feitos mais célebres da expansão portuguesa, como a descoberta do caminho marítimo para a Índia por Vasco da Gama. Salazar ficou tão abalado que sofreu um AVC, de que depois recuperou. A ordem de Salazar era que as forças militares portuguesas resistissem até ao último homem. Mas o governador da India, nessa altura o general Vassalo e Silva, teve o bom senso de avaliar o desastroso resultado de um confronto com um exército indiano composto por dezenas de milhares de homens bem armados, perante um pequeno grupo de militares portugueses. Salazar não queria que eles se rendessem, mas o general Vassalo e Silva teve o bom senso de ordenar que o fizessem. Caso contrário seria um massacre. E por isso expulsaram-no do Exército e quando chegou a Lisboa foi agredido por alguns “patriotas”, entre os quais se contaram jornalistas, pela sua atitude considerada de traição. Era uma situação que Salazar não queria admitir, mas a verdade é que, para além da desigualdade de forças, sofria o desgaste da pressão internacional que era cada vez maior.

A circunstância de se ter mantido a informação sob censura e sempre muito condicionada pode ser um dos fatores que ajudam a explicar que o regime tenha durado tanto tempo?
JT) Sim, foi sem dúvida um dos factores mais importantes. A censura fazia parte do conjunto do aparelho repressivo de Salazar, de que também constava a PIDE, a Legião Portuguesa, a Mocidade Portuguesa, além da organização corporativa, do controlo dos sindicatos, dos ensinamentos mais conservadores nas escolas e nos manuais escolares e outros variados órgãos e instrumentos coercivos utilizados por Salazar, entre os quais a amplíssima rede de informadores policiais que estava presente em todos os recantos da vida portuguesa. Salazar controlava tudo. Era ele próprio que recebia os relatórios da censura e que tinha contactos directos com a PIDE. Por vezes se disse que Salazar desconhecia isto, tentando desculpabilizá-lo, e que eram os ministros os “culpados”... Não, ele sabia de tudo, estava a par de tudo. Como esteve a par do assassinato do general Humberto Delgado, por exemplo. A brigada da PIDE que o assassinou estava bem instruída e quem a comandou foi Rosa Casaco, que era íntimo de Salazar e seu único fotógrafo pessoal.

Mas toda essa fortíssima repressão não impediu que a Oposição engrossasse e que fosse cada vez mais ameaçadora em face de um regime incapaz de dar resposta às grandes questões nacionais e que internamente perdia alguns dos seus antigos apoios do pós- guerra, nomeadamente nas camadas médias e intelectuais. Desde a década de 1950, Salazar não conseguia conquistar a intelectualidade, os grandes nomes da cultura em todos os campos opunham-se-lhe frontalmente. As bases ideológicas do regime eram frágeis e nunca conseguiram construí-las sólida e duradouramente. Assentavam, sobretudo, em apenas alguns valores tradicionais e regressivos da sociedade portuguesa, que tinham maior efeito nas massas rurais, submetidas mais de perto à influência da igreja tradicional e reaccionária.

E de que forma o estudo da relação de Salazar com os media e o estudo do controlo dos processos informacionais nesse período poderão contribuir para uma ponderação sobre a natureza do regime?

JT) Embora Estado fortemente autoritário e, quanto possível, centralista, o Estado Novo nunca conseguiu conformar-se numa unicidade necessária para poder ser verdadeiramente considerado totalitário na sua natureza, o que, aliás, foi expressamente rejeitado em alguns textos e afirmações públicas do próprio regime. Foram variados os factores que para isso contribuíram, tanto de natureza externa como auto-limitativos, de natureza ideológica. O direito e a moral foram para Salazar princípios fundadores e orientadores do Estado Novo, pretendendo assim, em princípio, afastar-se do uso de um poder puramente arbitrário e sem regras. Porém, na prática, como se sabe, transgrediu esses princípios, usando imoderadamente o poder sem limites, justificado pela imperiosa necessidade de defesa dos superiores interesses da “Pátria una e indivisível”, da Religião Cristã, dos valores intemporais da família tradicional. Em torno destes princípios e dos órgãos que constituiu, Salazar buscou debalde a unicidade, a afirmação do pensamento único, a generalizada afirmação de uma doutrina que visava, em última instância, formar o “espírito nacional” com que se identificassem todos os portugueses sob a autoridade incontestada do chefe supremo. Nas raras manifestações públicas que promoveu, apregoava-se o slogan de “Deus, Pátria e Família”, a que se juntava “Salazar! Salazar! Salazar!”. Na ausência de um partido único (União Nacional) mobilizador e suficientemente influente para ser a base formativa e dinamizadora desse “espírito nacional”, o instrumento mais eficaz que se antevia era a utilização da Imprensa como seu principal suporte comunicacional, através de uma dissuasão controlada que não deixaria de tomar frequentemente a natureza de uma imposição autoritária, excedendo os limites do legalismo e da temperança cuja face procurava preservar.

É nesse contexto que, como vimos, se criou o Secretariado de Propaganda Nacional com a expressa função de “integrar os portugueses no pensamento moral que deve dirigir a Nação” ou, ainda mais explicitamente, de divulgar o “espírito de unidade que preside à obra realizada e a realizar pelo Estado Novo”, visando assim “o consenso da sociedade portuguesa em torno do ideário do regime”. É nesse sentido que aflora o que, prudentemente e com reservas, se pode denominar a tentativa de criação de um Estado totalitário. Embora este nunca tenha sido alcançado e seja, até, como tal, formalmente não defendido institucionalmente, há a esperança de que a cultura, a escola, os meios de comunicação pudessem servir o objectivo da ideia de defender uma pátria una e indivisível construída com base no frágil ideário do Estado Novo.

Como dissemos atrás, até princípios da década de 1950 decorre o período mais pujante de afirmação do regime, que consegue algum êxito na criação, entre as classes superiores e médias, de uma opinião pública favorável a esse desiderato. É a fase mais bem-sucedida da doutrinação do regime, mas globalmente os resultados são pouco duradouros e não resistem às correntes contrárias.

O relativo fracasso desta política é reconhecido pelo governo que faz uma viragem com a criação, em Fevereiro de 1944, do Secretariado Nacional da Informação (SNI), deixando a “propaganda” de ser o objecto central ao serviço da qual tinha estado a informação, passando esta à função primacial de apresentar o regime como o único espaço de identificação com o “espírito nacional”. Para tal, tentou-se captar os favores da Imprensa para esta missão considerada patriótica e, ao mesmo tempo, reprimi-la, o que era obviamente inconciliável. Foi aqui que o Estado Novo perdeu a batalha da Informação. Tentando manter-se precariamente em limites legais, como se disse, Salazar não suprimiu os jornais que não lhe fossem favoráveis, bastando-lhe controlá-los com uma censura mais ou menos dura. As guerras coloniais acabaram por pôr ainda mais em cheque essa política dúbia, esse precário equilíbrio meio legalista que Salazar sempre tentou manter, com a aparência “democrática” de legitimar-se com a realização de eleições que nunca dariam resultados desfavoráveis pois estavam inteiramente controladas.

Como balanço ou ideia final, defendemos que, verdadeiramente, não se poderá classificar a natureza do Estado Novo como totalitária nem sequer “meio-totalitária”, pois de facto fracassaram as suas intenções, a maior parte delas tímidas ou ambíguas, para conseguir esse desiderato que nem sequer era apresentado expressamente como objectivo central do seu projecto. Creio que melhor o deveremos classificar, no essencial, como uma violenta ditadura pessoal, que procurou, em vão, manter-se nos limites do direito e da moral. Julgo que as considerações que deixámos atrás sobre as relações entre a Imprensa e o Estado Novo corroboram esta conclusão.

José Manuel Tengarrinha
É autor de um conjunto vasto de obras no domínio da História e das Ciências Sociais, destacando-se nomeadamente pelos estudos pioneiros sobre a história da imprensa em Portugal. A este respeito, podemos salientar a primeira História da Imprensa Periódica Portuguesa, (1965; 1989); Da Liberdade Mitificada à Liberdade Subvertida; Uma Exploração no Interior da Repressão à Imprensa Periódica de 1820 a 1828. Movimentos Populares Agrários em Portugal – 1750-1825 (1994); Imprensa e Opinião Pública em Portugal (2006); e a mais recente Nova História da Imprensa Portuguesa das Origens a 1865 (2013). Professor catedrático jubilado da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, lecionou nas áreas da História Contemporânea, História Moderna, História do Brasil, História Regional e Local e História da Imprensa Periódica.
Durante o Estado Novo, destacou-se na luta política de oposição ao regime. Foi membro da Comissão Central do Movimento de Unidade Democrática (MUD), e participou em várias campanhas políticas da Oposição Democrática desenvolvidas entre 1958 e 1974. Enquanto jornalista, trabalhou no diário de oposição República, e fez parte do núcleo redactorial das revistas Vértice e Seara Nova, integrando ainda o grupo fundador do Diário Ilustrado, de que foi chefe da redação até 1962. A Censura ditou então a cessação da sua actividade jornalística, após a prisão pela polícia política. Esteve preso na Cadeia do Aljube e no Forte de Caxias, de onde foi libertado nos dias que se seguiram ao derrube do Estado Novo. Após o 25 de abril de 1974, participou na fundação e na liderança do Movimento Democrático Português/Comissão Democrática Eleitoral (MDP/CDE), foi deputado à Assembleia Constituinte em 1975-1976 e eleito para a Assembleia da República nas quatro primeiras legislaturas até 1987.

 

[1] Doutoranda em Sociologia no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-ULisboa). E-mail: mailto:taniaa_a@ hotmail.com

[2] José Manuel Tengarrinha, Imprensa e Opinião Pública em Portugal, Coimbra, MinervaCoimbra, 2006, pp. 183-195.

[3] Mais tarde, Marcelo Caetano esclareceria a razão desta mudança: “Houve um momento em que esteve na voga a ‘propaganda’, em breve desacreditada por tudo o que a palavra sugere de intencional e tendencioso. Mais equilibrados, os Ministérios ou serviços de informação destinam-se a pôr à disposição do público os factos da vida do Estado e a manter os contactos permanentes entre os governantes e os órgãos noticiosos” (Marcello Caetano, A Opinião Pública no Estado Moderno, Associação de Jornalistas do Porto, 1965, p. 56).

[4] Francisco Martins Rodrigues iniciou o seu percurso político em 1949, no MUD, e aderiu ao Partido Comunista Português (PCP) em 1953. Na sequência da sua actividade política nas fileiras da oposição ao regime, é detido pela polícia política, sendo na prisão de Peniche que conhece dirigentes como Álvaro Cunhal. Em Janeiro de 1960, é um dos protagonistas do conhecido episódio de fuga da cadeia de Peniche de vários membros comunistas. A sua ruptura com o PCP, firmada em 1963, já depois de ter posto em causa a orientação do PCUS, após o XX Congresso, concretiza uma dissidência com a linha do partido no que concerne a guerra colonial. Francisco Martins apoiava então a insurreição popular armada como forma de oposição à política colonial do Estado Novo. Já em Paris, participa na criação do Comité Marxista-Leninista Português e da Frente de Ação Popular, em 1964, no mesmo ano em que visita a China Maoísta e a Albânia. Após o 25 de Abril de 1974, faz parte do processo de fundação do Partido Comunista Reconstruído (PCR) e da União Democrática Popular (UDP).

[5] José Manuel Tengarrinha, Imprensa e Opinião Pública em Portugal, Coimbra, MinervaCoimbra, 2006, pp.197-204.

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