Publicado originalmente em 11 de setembro de 2013 |
Em 11 de setembro de 1973, o general Augusto Pinochet liderou um sangrento golpe que esmagou a classe trabalhadora chilena e deu início a 17 anos de uma ditadura militar-fascista. O golpe desencadeou uma repressão selvagem que assassinou, torturou, levou ao desaparecimento e ao exílio dezenas de milhares de trabalhadores, estudantes e esquerdistas chilenos.
Esse banho de sangue contrarrevolucionário foi instigado pelo governo Nixon em Washington e organizado em estreita colaboração com a CIA e o Pentágono. O golpe no Chile fez parte de uma série de golpes apoiados pelos EUA que varreram a América Latina – Brasil em 1964, Bolívia em 1971, Uruguai em 1973 e Argentina em 1976 – impondo ditaduras militares comprometidas com a repressão da classe trabalhadora e a defesa dos interesses do capital estrangeiro e nacional.
No Chile, o aniversário de 40 anos do golpe foi marcado com uma série de manifestações e eventos, incluindo uma passeata de cerca de 60.000 pessoas carregando cartazes com fotografias das vítimas do regime e com as seguintes palavras: “Quarenta anos após o golpe, nada, nem ninguém, foi esquecido”.
Em uma cerimônia realizada pelos partidos de oposição, Michele Bachelet, ex-presidente e candidata do Partido Socialista nas eleições presidenciais de novembro deste ano, declarou que era “injusto falar do golpe de Estado como um destino fatal e inevitável”.
Ela está sem dúvida correta, mas não pelas razões que imagina. O golpe não era inevitável; a classe operária chilena mostrou imensa coragem e determinação, mas foi traída ao açougueiro Pinochet pelo governo da Unidade Popular do Presidente Salvador Allende, que acabou pagando com sua própria vida.
O governo da Unidade Popular, dominado pelo Partido Socialista de Allende e pelo stalinista Partido Comunista do Chile, incluiu também um setor dos democratas-cristãos e subordinou ao capitalismo o extraordinário levante revolucionário dos trabalhadores chilenos. Em 1973, esse governo estava tomando à força as fábricas ocupadas pelos trabalhadores e havia convidado os generais do exército, incluindo o próprio Pinochet, a ingressar em seu gabinete para coordenar melhor essa repressão.
A tragédia no Chile constituiu uma peça fundamental na série de traições realizadas pelo stalinismo, pela socialdemocracia e pelos sindicatos que permitiram ao capitalismo sobreviver a uma onda mundial de lutas revolucionárias no final dos anos 1960 e início dos anos 1970 – os eventos de maio a junho na França em 1968, as ondas de greves na Itália e Alemanha em 1969, os enormes protestos contra a guerra, as rebeliões nos guetos e as lutas industriais militantes nos EUA, a queda das ditaduras espanhola, portuguesa e grega, e a greve dos mineiros britânicos que derrubou o governo conservador de Edward Heath.
No Chile e em outros lugares da América Latina em particular, essas traições foram ajudadas e incentivadas pela tendência revisionista liderada por Michel Pablo e Ernest Mandel, que rompeu com o trotskismo e abandonou o programa revolucionário da Quarta Internacional. Ao invés disso, essa tendência promoveu a política nacionalista pequeno burguesa e guerrilheira do castrismo, desviando assim toda uma camada de jovens de espírito revolucionário da luta para resolver a crise da direção revolucionária na classe trabalhadora e para confrontos armados suicidas com os militares.
O World Socialist Web Site está publicando a seguir, de forma resumida, a declaração escrita pelo Comitê Internacional da Quarta Internacional, o movimento trotskista mundial, alguns dias depois do golpe. Esta análise da dinâmica política e social dos eventos chilenos mantém sua validade e é de vital importância na preparação de um novo período de luta revolucionária nos dias de hoje.
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Defender a classe operária chilena
Declaração publicada pela Quarta Internacional em 18 de setembro de 1973
Stalinismo e contrarrevolução
“Não defendam seus direitos democráticos através de Frentes Populares e do parlamento, mas através da derrubada do Estado capitalista e do estabelecimento do poder dos trabalhadores. Não depositem a confiança no stalinismo, na socialdemocracia, no centrismo, no revisionismo ou na burguesia liberal, mas construam o partido revolucionário da Quarta Internacional cujo programa será a revolução permanente.”
São essas as lições sendo escritas a sangue pelo heroico proletariado chileno enquanto tanques e esquadrões da morte da burguesia chilena cobram seu preço assassino, e enquanto stalinistas, socialistas e a burguesia liberal percorrem os quartéis em busca de um general misericordioso ou se preparam para fazer as pazes com os novos senhores do Chile.
A classe trabalhadora jamais se esquecerá da resistência desigual, porém inspiradora, dos trabalhadores chilenos, que demonstraram, não pela última vez, que são a única força revolucionária no Chile a enfrentar o imperialismo e os capitalistas locais. No entanto, nunca perdoará os líderes stalinistas e socialistas, cuja covardia política, aliada à traição das suas bases, por si só permitiram que a burguesia chilena seguisse o exemplo da Indonésia, Grécia, Bolívia e Sudão.
Tais eventos testemunham, da maneira mais sanguinária, a crise de direção da classe trabalhadora e os enormes perigos que a confrontam, como resultado do colapso do sistema monetário mundial e das medidas de Richard Nixon de 15 de agosto de 1971.
O stalinismo, mais uma vez, está condenado como o mais consistente defensor da propriedade e do Estado burgueses e como o inimigo mais violento da classe trabalhadora na luta pela defesa de seus direitos democráticos básicos.
Desde o início do regime de Salvador Allende em novembro de 1970, todo o peso da burocracia de Moscou tem sido usado para escorar a fraca e reacionária burguesia chilena e desorientar a classe trabalhadora através do auxílio do Partido Comunista do Chile.
Se em 1970-71 os militares foram incapazes de tomar o poder e tiveram que esperar três anos para executar seus planos, podemos dizer categoricamente que isso aconteceu porque exigiu que o stalinismo realizasse a desorientação política sistemática e planejada antes que as condições para o golpe fossem criadas. A arma ideológica principal dos stalinistas chilenos para preparar as condições para o golpe foi a teoria menchevique de uma revolução em duas etapas e o conceito fracassado de uma “via parlamentar pacífica ao socialismo” através de Frentes Populares – ambos os quais desarmaram a classe trabalhadora e preveniram sua mobilização no momento crucial.
Ignorando os efeitos da crise econômica e monetária mundial, que levaram Allende ao poder em primeiro lugar, e conscientemente depreciando a natureza de classe reacionária do Estado capitalista, ao mesmo tempo em que exagerava e distorcia a inclinação reformista de um pequeno setor da burguesia chilena, o stalinismo chileno se tornou o carrasco da revolução chilena.
A derrota não era inevitável
Nenhuma defesa da classe trabalhadora é possível sem que antes se desvelem as mentiras, meias-verdades e as completas distorções utilizadas pelos stalinistas britânicos e europeus para acobertar as causas da derrota no Chile e subestimar a magnitude de suas consequências.
Tendo contribuído fortemente para enganar os trabalhadores chilenos ao apoiar de forma não-crítica cada recuo reformista de Allende, os stalinistas europeus agora tentam apresentar os eventos chilenos como trágicos, porém historicamente inevitáveis. A última coisa que esses burocratas reformistas desejam é um exame honesto dos eventos chilenos.
Seu medo e desprezo pela classe trabalhadora são tão grandes que eles não ousarão fazer a mínima crítica às suas políticas. Pelo contrário, a derrota chilena os encorajará a adotar a “via pacífica” mais vigorosamente.
Todos os estágios da catástrofe chilena foram determinados pela crise da direção da classe trabalhadora, pela falência do stalinismo e da socialdemocracia chilena. Essa falência foi expressa na recusa absoluta de se expropriar totalmente os capitalistas chilenos e na completa prostração perante o Estado capitalista travestida como a defesa dos “100 anos de democracia parlamentar no Chile”.
As lições do Chile são universais e se aplicam com particular relevância àqueles países como Itália e França, onde o stalinismo domina o movimento operário e usa de sua doutrina reacionária de “coexistência pacífica” e “democracia avançada” para acalmar as massas e permitir que o fascismo e o Estado capitalista preparem seus ataques.
Toda a história da América Latina do século XX, assim como a rica experiência do movimento da classe trabalhadora europeia desde a Comuna de Paris, demonstraram com cruel clareza que o Estado capitalista não é neutro, que ele é sim a expressão do desejo coletivo da classe dominante – uma máquina para a coerção de uma classe por outra. A única função do Estado é a defesa das relações capitalistas de propriedade.
Na época do declínio do capitalismo – imperialismo –, o conflito entre as forças produtivas e as relações de produção é enormemente intensificado e, na mesma medida, o papel do Estado de intervir na vida social e econômica de cada país é ampliado. O aparato de repressão – “destacamentos de homens armados”, como Engels define a máquina do Estado – assume um tamanho desproporcional e o ataque às liberdades democráticas se torna uma característica universal da dominação capitalista. Se a classe trabalhadora fracassa em criar um partido revolucionário para derrubar o Estado, então a transição ao fascismo e ao bonapartismo se torna inevitável.
Essa foi a lição da Alemanha, Itália e Espanha nos anos 1930. Essa era a principal tarefa que a coalizão de Allende encarava em 1970, mas da qual Allende, ajudado pelos stalinistas, esquivou-se firmemente.
O papel dos militares
Nenhum regime popular poderia coexistir com as forças militares chilenas lideradas pelos representantes mais reacionários dos capitalistas e proprietários. Cada um de seus líderes era um profissional reacionário treinado pela CIA.
Ao invés de dissolver o congresso, o senado e as forças armadas e ao invés de criar uma milícia popular cujo poder derivasse dos conselhos de trabalhadores e agricultores pobres, os stalinistas chilenos se tornaram os maiores defensores da “lei e ordem” burguesa através da criação do governo de Frente Popular.
Antes do golpe, em recente seminário organizado pelo jornal stalinista Crítica Marxista Mundial,o porta-voz do stalinismo chileno, Banchero, declarou claramente a atitude de seu partido diante do Estado: “Uma característica diferenciada do processo revolucionário no Chile é que ele começou e continua por dentro dos moldes das instituições burguesas do passado... No Chile, onde uma revolução popular democrática anti-imperialista, antimonopolista e antifeudal está acontecendo, nós mantemos essencialmente a velha máquina estatal. Gabinetes governamentais são ocupados principalmente por velhos oficiais... A administração exerce suas funções sob a liderança e o controle do governo popular.”
“As forças armadas, observando seu status de uma instituição profissional, não tomam parte em debates políticos e se submetem legalmente ao poder civil constituído. Laços de cooperação e respeito mútuo se desenvolveram entre o exército e a classe trabalhadora em nome do objetivo patriótico de moldar o Chile como uma terra livre, avançada e democrática.
“Elementos ultraesquerdistas clamam pela ‘introdução’ imediata do socialismo. Nós esperamos, no entanto, que a classe trabalhadora ganhe total poder gradualmente: será em conjunto com o controle que ganhamos da máquina estatal que iremos começar a transformá-la nos interesses do desenvolvimento posterior da revolução.”
Banchero foi precedido pelo stalinista britânico, Idris Cox, que também pregava a “via pacífica”:
“No Reino Unido, é sempre colocada a questão, mas principalmente por elementos ultraesquerdistas, se podemos atingir nossos objetivos sem o uso da força armada ou a guerra civil. Ninguém pode nos garantir que isso não irá acontecer, mas é somente nossa visão que, com a mudança no equilíbrio das forças mundiais, e com a posição enfraquecida da classe dominante britânica, é improvável que esta usaria força armada para contestar os resultados de uma eleição democrática.”
A defesa de Cox foi mais sucintamente expressa por Pablo Neruda, poeta stalinista e embaixador chileno em Paris: “Quanto a nosso exército, nós o amamos. Ele é o povo de farda.”
Os reais autores dessa estratégia reformista, no entanto, não se encontram no Reino Unido ou no Chile, mas no centro burocrático em Moscou. Avançando os interesses de sua política externa e interna, a burocracia soviética tem sido a principal defensora não somente da “via pacífica”, mas, mais importante, de uma abordagem nova e mais flexível em relação às forças armadas na América Latina.
Por gerações, tem sido uma tradição dos socialistas latino-americanos e até mesmo de alguns setores dos stalinistas tratar o exército com hostilidade e suspeita, mas essa atitude entra em conflito com a política da burocracia da URSS, que é de reconhecer e negociar com cada ditador militar, seja ele Franco (Espanha), Papadopoulos (Grécia) ou Lon Nol (Camboja). Por isso que no passado recente os “teóricos” stalinistas se ocuparam em condicionar seus colegas latino-americanos a trabalhar com e sob o exército.
Para fazer isso, eles tentam obscurecer o caráter de classe do exército e seu papel essencialmente repressor. Na edição de novembro de 1970 do Comment, o jornal do PC britânico, um tal Dr. Shuglovsky escreveu um longo artigo que soletrava de forma definitiva a nova linha, que encontrou sua sequela sangrenta no Chile.
Escreveu Shuglovsky: “É a opinião dos Partidos Comunistas que as forças saudáveis do exército devem cumprir um importante papel no movimento de libertação e na realização de profundas mudanças sociais. Os comunistas se opõem fortemente a visões antimilitares vulgares e a qualquer manifestação de sectarismo [!!] em relação aos militares, porque estas simplesmente movem as águas do moinho reacionário.”
Apesar de apresentado como uma análise teórica, esse artigo é uma clara instrução aos céticos no PC. Da mesma forma, deve-se lembrar que o finado Stalin instruiu os comunistas chineses nos anos 1920 a se subordinarem ao exército do Kuomitang de Chiang Kai-Shek sob a justificativa que este era moderno, progressista e até mesmo revolucionário. Esta teoria burocrática levou diretamente ao maior massacre de comunistas que a China testemunhou – o massacre de Xangai.
Capitulação à direita
Foi dado um significado especial no Chile a essa questão devido ao fato de que tanto câmara como o senado eram dominados por dois partidos de direita, o Democrata Cristão e o Nacional, ambos dedicados à derrubada de Allende.
Os democratas-cristãos – liderados pelo indicado pela CIA, Eduardo Frei – se utilizaram ao máximo da falsa legitimidade conferida à Câmara e ao Senado por Allende para atrasar e obstruir sua legislação reformista, ao mesmo tempo em que preparavam um plano de ataque em conjunto. Nesse plano seus principais aliados eram os stalinistas, os quais apoiaram incondicionalmente a recusa de Allende de formar uma milícia operária. No ápice da crise ministerial de 1972, Allende deixou especificamente clara sua determinação em extinguir a oposição de extrema esquerda a suas reformas Fabianas, rejeitando expressamente a ideia de uma milícia popular.
Disse na época Allende: “Aqui não haverá outras forças armadas além das estipuladas pela Constituição. Isso quer dizer, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica. Eliminarei qualquer outra que possa aparecer.”
Na escala da história, as exíguas reformas de Allende, que despertaram grandes esperanças nos trabalhadores, nos camponeses e na classe média, pesaram muito menos que a traição dessas aspirações através de um respeito forçado à legalidade constitucional.
Os reacionários na oposição puderam, portanto, integrar seus planos mais efetivamente com os “gorillas” do exército, os credores internacionais e os monopólios expropriados. Usando sua maioria constitucional nas duas casas do congresso e aproveitando-se da crescente desilusão das massas diante da incapacidade de Allende em conter a inflação, a oposição colocou em prática a primeira parte de seu plano: forçar a renúncia dos ministros radicais e levar os oficiais ao governo. Depois das eleições suplementares de janeiro de 1972, Allende foi forçado a demitir seu Ministro do Interior socialista, enquanto seus planos para a reforma do sistema de duas câmaras eram efetivamente bloqueados pela oposição.
Em junho de 1972, mais pressão e conversas secretas entre governo e oposição produziram outra crise ministerial quando Allende demitiu seu Ministro da Economia de esquerda, Pedro Vuskovic, e abandonou seus planos de nacionalização. Previsivelmente, isso teve todo o apoio dos stalinistas que, assim como na Espanha em 1938, haviam se convertido na extrema direita da coalizão. Os stalinistas acusaram Vuskovic de “destruir a confiança nos negócios”. Ao mesmo tempo, foram partidários de um “diálogo” com os democratas-cristãos e aceitaram, no lugar da nacionalização, o suspeito programa da oposição de “participação operária”.
O líder sindicalista Figuero deu boas-vindas a esse plano corporativista em palavras muito ilustrativas: “A participação deve ser expressa NÃO na posse da propriedade da empresa por seus trabalhadores, mas sim em um papel efetivo em seu gerenciamento e planejamento.” Essa exortação veio combinada com uma guinada por maior produtividade e “trabalho voluntário” (Relatado no Workers Press, 1º de abril de 1972).
Em agosto de 1972, a “via pacífica” sofreu um brusco golpe quando os lojistas se enfrentaram com a polícia em Santiago. Os stalinistas usaram isso imediatamente como pretexto para exigir o banimento dos grupos de extrema esquerda, como o Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR) no sul, com a ridícula alegação de que as ações dos grupos de esquerda “criariam pretexto para intervenção militar”.
A enorme hostilidade dos stalinistas em relação a qualquer grupo de esquerda que não seguisse a linha de Allende encontrou sua brutal expressão em agosto de 1972, quando membros stalinistas da polícia atacaram uma sede do MIR nas proximidades de Santiago e mataram cinco camponeses.
No fim de 1972, a reação estava pronta para a segunda fase: a greve de proprietários de caminhões no sul contra a nacionalização. Depois de quatro semanas, Allende não só capitulou à reação, como também aceitou trazer três generais para seu ministério e, pela segunda vez, demitiu um Ministro do Interior. A nomeação mais proeminente foi a do general Morio Prats, chefe das forças armadas e notável reacionário contra a classe operária. O Ministro do Interior, Del Canto, foi demitido porque permitiu “ocupações ilegais” de indústrias privadas pelos trabalhadores. A guinada à direita era inexorável.
Isso não foi só uma vitória evidente para os reacionários, mas um avanço significativo para os stalinistas, que lutaram todo o tempo contra a ocupação de fábricas e qualquer desapropriação de terras e se opuseram implacavelmente a qualquer luta que não fosse controlada por eles ou por Allende.
Por todo o mundo, a máquina de mentiras stalinista trabalhou para distorcer essas mudanças ameaçadoras. O Comment, em novembro de 1972, não hesitou em defender Allende (e Prats):
“Isto não é um sinal de fraqueza? Ou uma rendição? Seria uma traição?... a chegada destes oficiais ao governo, por mais estranha que possa parecer, é um sinal de que a direita está sendo manobrada e derrotada neste combate na luta de classes.”
Da mesma forma que na Indonésia, onde Sukarno tentou balancear a esquerda contra a direita em seu condenado gabinete, Allende presenteou o stalinista Figuero com o posto de Ministro do Trabalho.
A insolúvel crise econômica
Os delegados participam da conferência de Bretton Woods em julho de 1944 |
Por trás das crescentes intrigas da oposição, da arrogância dos generais, das sistemáticas vacilações do presidente Salvador Allende e da capitulação dos stalinistas durante 1972-73, estava a insolúvel crise do capitalismo chileno e mundial.
Quando Allende chegou ao poder, o Chile sofria uma grande crise econômica e financeira, que se aprofundou consideravelmente desde então. As reservas do Banco Central baixaram de $500 milhões para $280 milhões, e em abril de 1972 estimava-se que não havia mais de $60 milhões. Ao mesmo tempo, a dívida externa excedia os $3 bilhões, da qual maior parte estava sob o controle dos bancos centrais europeus.
O fracasso em rejeitar a enorme dívida nacional, aliado à contínua queda nos preços da exportação do cobre, fez com que Allende desvalorizasse o escudo chileno quatro vezes em dois anos. Somente a submissão à dívida nacional somou quase $300 milhões em um ano. O colapso de Bretton Woods e o corte na ajuda americana acabaram com todas as esperanças da economia chilena encontrar uma solução. O compromisso travado com os credores internacionais encorajou a reação local a aumentar a pressão para impedir qualquer nova nacionalização e preparar-se abertamente para a contrarrevolução.
Manifestações de operários e estudantes contra a direita eram condenadas pelos stalinistas, enquanto Allende se ocupava de elogiar os odiados carabineros, a elite da força policial usada em ataques contra trabalhadores e aqueles que ocupavam imóveis desabitados.
As palavras de Allende expressavam claramente a perplexidade — para não dizer a impotência — do médico pequeno burguês centrista perante a máquina do Estado capitalista e sua completa falta de confiança na classe operária.
Como declarou na época: “Não é por acaso que o lema dos carabineros é ‘Ordem e Pátria’. Ordem, baseada na autoridade moral, no cumprimento correto dos deveres, que de nenhum modo supõe a negação da hierarquia. De fato, tem-se um senso de disciplina social e o uso da força pública” (Workers Press, 11 de maio de 1972). Foi precisamente este “senso de disciplina e hierarquia” que levou o Guarda Presidencial dos carabineros a render-se quando aconteceu o golpe militar.
Ainda em setembro de 1972, Allende descartou qualquer possibilidade de golpe militar: “Creio que o meu governo é a melhor garantia para a paz. Aqui há eleições e liberdade. Noventa por cento dos chilenos não querem um confronto armado”.
No entanto, os outros 10% não compartilhavam as ilusões stalinistas de Allende. Novos grupos, como a frente semifascista “Pátria e Liberdade”, começaram a armar-se abertamente contra o regime, enquanto os latifundiários no Sul formavam exércitos privados para impor “justiça” sumária sobre os camponeses. Além disso, sob os termos do acordo de outubro de 1972 com a oposição, Allende concedeu uma arma inestimável à reação ao liberar as 155 estações de rádio, desvinculando-as de uma ligação obrigatória com a rede do Estado.
Em 1973, a política de “moderação e conciliação” dos stalinistas havia desiludido os trabalhadores da indústria e, pela primeira vez, os mineiros do cobre começaram a fazer greves por aumento de salário. Isto foi um sinal importante da crise, mas sob recomendação dos ministros stalinistas, Allende atacou a classe trabalhadora da maneira mais cruel.
Ao retornar de Moscou, em janeiro de 1973, Allende atacou os mineiros do cobre que estavam em greve, taxando-os de “verdadeiros banqueiros monopolistas que exigem dinheiro para seus bolsos sem nenhuma consideração com a situação econômica do país”.
No mesmo discurso, Allende revelou que a dívida externa havia aumentado em dois anos de $3 bilhões para $4,02 bilhões e admitiu, além disso, que o parlamento deveria ter sido dissolvido em um estágio inicial. Este foi o preço da “via pacífica”.
Aqui, os stalinistas também mostraram sua cara. Quando os mineiros da grande mina de cobre nacionalizada El Teniente entraram em greve por aumento salarial durante 70 dias, os stalinistas se opuseram às negociações de Allende, caracterizando-as como “vacilação” e “altamente inadmissíveis”, e incentivaram o regime a usar canhões de água e gás lacrimogêneo contra os mineiros grevistas. A província de O’Higgins, local das greves, foi colocada sob controle militar.
Ao mesmo tempo, Allende propôs trazer de volta os generais que renunciaram aos seus postos em março de 1973. O propósito desta ação era claro: Allende e os stalinistas queriam utilizar o exército contra a classe trabalhadora, mesmo apesar de os dirigentes do partido estarem convencidos de que um golpe estava sendo preparado pela oposição para agosto ou setembro!
Em junho de 1973, a direita tentou, pela primeira vez, tomar o poder depois da greve dos mineiros do cobre. Essa tentativa do Segundo Regimento Armado fracassou, porém demonstrou quanto o regime estava extremamente vulnerável a um golpe.
Este ataque estimulou a classe trabalhadora a entrar em ação, a ocupar fábricas e a fortalecer as assembleias dos trabalhadores de base que surgiram de outubro a novembro de 1972.
A reação do líder stalinista chileno, Luis Corvalán, ao golpe abortado de 29 de junho atestou o pânico destes traidores quando viram que o governo Allende estava condenado à morte. Foi-se a complacência e a euforia, mas no lugar pairava uma paralisia de terror perante o exército. Assim, chegou a declarar Corvalán: “A revolta foi contida rapidamente graças à ação pronta e determinada do Comandante-em-Chefe do exército, à lealdade das forças armadas e da polícia... Continuamos apoiando o caráter absolutamente profissional das instituições armadas. Seus inimigos não estão no povo, mas no campo reacionário” (Marxism Today, setembro de 1973).
Mesmo nessa hora tardia, a situação poderia ser transformada com uma liderança resoluta e decisiva. No entanto, os stalinistas chilenos seguiram um curso que não era somente falso, mas, pior ainda, contraditório. Como Corvalán escreveu: “A consigna patriótica e revolucionária deve ser: ‘Não à guerra civil! Não ao fascismo.’” Mas o fascismo é guerra civil contra os trabalhadores e a existência do sistema capitalista carrega em si o perigo potencial de guerra civil contra a classe trabalhadora. Renunciando à guerra civil e deixando a luta nas mãos dos reacionários oficiais burgueses, o stalinismo chileno só facilitou e acelerou a derrota dos trabalhadores.
Mas os trabalhadores chilenos estavam para receber um golpe ainda mais nefasto. Nessa procura desesperada por aliados, os stalinistas chilenos começaram a fazer os apelos mais oportunistas às fileiras de fascistas e partidos nacionalistas extremistas. Corvalan implorou descaradamente aos seguidores de Pablo H. Rodriquez, o fascista, por um “diálogo” para evitar a guerra civil, para “unir nosso país, para evitar divisões artificiais entre os chilenos, que têm um interesse comum”. Os fascistas previsivelmente trataram as súplicas de Corvalan com desprezo e escárnio... e se apressaram com os preparativos para a guerra civil.
Como os trabalhadores ficaram cada vez mais céticos com o regime e começaram a se organizar espontaneamente em autodefesa, a direita adiantou seus preparativos e falou abertamente em seguir a “via indonésia”. O maior jornal burguês chileno, El Mercurio, falou com entusiasmo no dia 27 de julho sobre o massacre “espontâneo e horrível” na Indonésia que, em sua opinião, “não era assim tão horrível” porque fez da Indonésia “uma das nações líderes no sul da Ásia, na qual a economia se estabilizou e a ordem prevalece.”
Frei, o presidente anterior, defendeu abertamente a destruição do “exército paralelo”, crescente nas fábricas. Diante desta situação, só uma ação determinada do governo, armando os operários, dissolvendo o exército, alertando toda a classe operária e preparando-a para a luta, teria prevenido ou derrotado um golpe. O governo e os stalinistas fizeram o contrário.
Uma “lei de controle de armas” aprovada durante a crise de outubro de 1972 foi reativada para impedir o armamento dos trabalhadores. Na marinha e no exército, os oficiais de direita se aproveitaram da apatia, passividade e indiferença dos stalinistas para doutrinar as tropas e prepará-las para a insurreição. Os fervorosos apelos ao exército de Allende só serviram para aumentar a determinação dos generais em dar um fim rápido e impiedoso à experiência da “via pacífica”.
O ataque final ao palácio presidencial de 11 de setembro acabou sendo o golpe culminante em um plano concebido graças ao consentimento do governo e do partido stalinista. Da mesma forma que Hitler e Franco, o General Pinochet venceu pela ausência de seu adversário, graças à traição do stalinismo.
A pequena burguesia e a reação
Máximo Gorki |
Uma pergunta final deve ser dirigida aos stalinistas: Por que nenhum líder stalinista se atreve a responder à pergunta crucial posta pela derrota? Por que a classe média, e com ela os soldados médios e rasos, se voltaram tão violentamente contra o regime? Se a “via pacífica” e o “respeito à legalidade” são as únicas garantias para se ganhar a classe média, por que fracassaram tão desastrosamente no Chile?
Responsabilizar as intrigas da CIA ou a tendência da classe média de apoiar sempre os regimes militares pelo que aconteceu, como agora sugerem os stalinistas, é insultar o marxismo e mascarar a traição da Frente Popular. Como Trotsky escreveu em “Aonde vai a França?” (1934):
“A pequena burguesia se distingue por sua dependência econômica e sua heterogeneidade social, sua camada mais alta é ligada diretamente com a burguesia. Sua camada mais baixa se move com o proletariado e chega até a cair no status de lumpemproletariado. De acordo com sua situação econômica, a pequena burguesia não tem política própria, sempre oscila entre os capitalistas e os trabalhadores. Sua própria camada mais alta a empurra para a direita, enquanto sua camada baixa, oprimida e explorada, pode girar repentinamente para a esquerda”.
Em períodos de crise aguda e na ausência de uma direção revolucionária, “a pequena burguesia”, prossegue Trotsky, “começa a perder a paciência e adota uma atitude mais hostil em relação a sua própria camada mais alta. Ela se convence da falência e da traição de sua liderança política... É precisamente essa desilusão da pequena burguesia, sua impaciência, seu desespero que o fascismo explora... Os fascistas demonstram ousadia, saem às ruas, atacam a polícia e tentam varrer o parlamento à força. Isso impressiona a pequena burguesia desesperada.”
As palavras de Trotsky são uma descrição precisa da pequena burguesia sob o governo de Allende. Os pequenos burgueses foram as primeiras vítimas da política de coalizão que tentou apaziguar a classe operária com subsídios enquanto prometia um aumento da produtividade aos capitalistas industriais, detendo drasticamente a nacionalização e negando-se a repudiar o grande peso da dívida externa contraída pelo governo anterior pró-EUA de Frei.
A queda no poder aquisitivo e no consumo foi sentida mais agudamente pela classe média baixa. Os grandes capitalistas queriam uma total desvalorização do Escudo ou um completo congelamento de salários com o desvio de dólares de importação de gêneros alimentícios para bens de capitais... Por outro lado, os trabalhadores queriam mais nacionalização, controle operário e o fim da fraude parlamentar.
Allende e os stalinistas refutaram ambas as alternativas e caíram na armadilha de suas próprias contradições. Era só uma questão de tempo antes que os imperialistas e a junta atacassem. Como epitáfio ao governo de Allende nós sugeriríamos a seguinte citação de Lenin:
“O proletariado não pode atingir a vitória se não ganhar a maioria da população para o seu lado. Mas limitar a vitória a uma maioria de votos nas eleições controladas pela burguesia ou condicioná-la a isto é estupidez grosseira ou engano absoluto dos trabalhadores. Para ganhar a maioria da população para o seu lado, o proletariado deve, em primeiro lugar, derrubar a burguesia e tomar o poder. Em segundo lugar, deve estabelecer o poder dos sovietes e quebrar completamente o velho aparato do Estado, através do que imediatamente desestabiliza o domínio, prestígio e influência da burguesia e da pequena burguesia acomodada sobre os trabalhadores não proletários. Em terceiro lugar, o proletariado deve destruir completamente a influência da burguesia e dos acomodados pequeno burgueses sobre a maioria das massas não proletárias e satisfazer suas necessidades econômicas de uma maneira revolucionária à custa dos exploradores.”
Construir o partido revolucionário
Defender a classe operária chilena significa assimilar as lições vitais deste período e construir uma nova direção revolucionária baseada nos princípios de Lenin e Trotsky.
Enquanto é verdade que o stalinismo desempenhou um papel central na derrota chilena, é impossível analisá-lo isoladamente dos centristas e revisionistas que cumpriram, consciente e inconscientemente, o papel de cúmplices do stalinismo.
Os centristas do Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR), que possuíam um considerável grupo de seguidores entre o campesinato sem-terra do sul, não adotaram uma atitude principista em relação a Allende e geraram grande confusão entre os camponeses. Sua política de “apoio crítico” a Allende, significou na prática a capitulação à Frente Popular. Como o POUM na Catalunha, na Guerra Civil Espanhola, esse grupo deixou de se opor a Allende nas eleições ao Congresso em março de 1973, exatamente quando os stalinistas e socialistas poderiam ter sido desafiados abertamente e a demanda por um governo operário-camponês poderia ter reunido a maioria dos trabalhadores e camponeses pobres.
Os revisionistas do Secretariado Unificado (SU) desempenharam um papel ainda mais criminoso. O Militant (jornal do Socialist Workers Party dos EUA), em sua edição de 4 de setembro de 1973, lamentava: “Mas ainda não há um partido que possa tomar esse exemplo (controle popular da produção) e estendê-lo através dos cordones (assembleias operárias) e por todo o país.”
Por que o SWP não diz a seus leitores o que aconteceu com o POR (Partido Operário Revolucionário do Chile), a seção do Secretariado Unificado, que abandonou o Comitê Internacional e se uniu ao Secretariado Unificado para apoiar as teorias revisionistas de Mandel e Hansen, teorias estas que liquidaram o trotskismo na América Latina e o substituíram por ideias e métodos de Guevara e Castro? Por que o SWP não lembra que foi ele mesmo o principal protagonista dessa linha política?
Não é fato que o partido trotskista não foi destruído no Chile pelo stalinismo ou pela junta militar, mas pela aplicação consciente da teoria revisionista de que as revoluções podem acontecer com êxito sem construir um partido marxista?
A derrota chilena, no entanto, não mudará nada no Secretariado revisionista. Longe de aprenderem qualquer lição, esses acontecimentos os aproximam ainda mais da burocracia, da burguesia nacional e do imperialismo. É por isso que os revisionistas do Grupo Marxista Internacional, por exemplo, não hesitam em unir-se com os paladinos stalinistas da Frente Popular no Reino Unido na manifestação contra a junta chilena – e em defesa da Frente Popular no Chile.
O revisionismo certamente alcançou um novo estágio de sua degeneração. Ao marchar com a Frente Popular se identificaram abertamente com as preparações contrarrevolucionárias do stalinismo e da burguesia. Lutar contra o stalinismo e o castrismo é destruir politicamente o revisionismo.
O Comitê Internacional faz um chamado para que haja a máxima solidariedade da classe operária internacional para boicotar as exportações e os produtos chilenos, assegurar a liberação de todos os prisioneiros políticos e cessar as execuções sumárias feitas pela junta. Ao mesmo tempo, exigimos do governo da URSS e dos regimes da Europa do Leste que rompam todas as relações diplomáticas com a junta chilena e que deem toda a ajuda possível aos trabalhadores combatentes do Chile.
- Abaixo a Junta Militar do Chile!
- Abaixo a Frente Popular!
- Abaixo o stalinismo!
- Viva os trabalhadores chilenos!
- Pela construção de seções do Comitê Internacional da Quarta Internacional!
18 de setembro de 1973
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