Lemos no dia de ontem (18/08/2020) numa matéria do Globo, traduzida a partir do “New York Times”, que Adolph Reed, intelectual negro marxista norte-americano, teve uma palestra cancelada na Universidade da Pensilvânia.
A chamada da reportagem dá a atender que foram grupos esquerdistas e antirracistas negros que fizeram gestões para que a palestra fosse cancelada. A leitura da matéria, contudo, não deixa isso claro. Vamos entender:
Reed, professor emérito da universidade que cancelou sua palestra, uma iniciativa dos Democratas Socialistas da América, a crescente ala esquerda do Partido Democrata – que apoiou Bernie Sanders nas prévias para indicar o candidato presidencial democrata em 2016 e 2020 – é um crítico contumaz das políticas econômicas e sociais dos democratas, as quais ele acusa de neoliberais. Reed não poupou, por exemplo, a política econômica e a política externa de Bill Clinton, sendo ainda um crítico severo do que ele chamou de “neoliberalismo” de Barack Obama.
Essas críticas, diga-se de
passagem, tornaram Reed um adversário tanto dos conservadores agrupados no
Partido Republicano, quanto dos chamados “liberais” – o que nos EUA equivale a
algo próximo da esquerda – defensores do Partido Democrata.
Há nos EUA nos últimos anos uma
preocupação com o que se chama de “polarização ideológica”. Tal como no Brasil
a polarização, parte principalmente da extrema direita, que tem em Trump seu principal
ídolo, mas que também se esgueira, não tão sorrateiramente, pelos porões
sombrios do fanatismo religioso, do machismo, da homofobia e do racismo. Uma verdadeira
“frente popular” fascista que procura se insurgir contra a América que esses
fanáticos consideram esquerdista e liberal. Tudo em favor da volta aos “Old
Times” – nunca especificando que bons tempos são esses - e do jargão “America
First”.
Tanto lá como cá, por parte dos
liberais moderados - que do lado de cá estão mais para a extrema direita –
critica-se os que reagem contra a ofensiva fascista, comparando oportunística e
covardemente antifascismo e fascismo, antirracismo e racismo, machismo e feminismo,
defesa dos direitos LGBTQI com homofobia, como se se resumisse aos dois lados
de uma mesma moeda. Como se tudo pudesse ser explicado colocando lado a lado e
com pesos iguais o opressor e o oprimido.
Os que fazem isso são no fundo –
e na superfície! - indivíduos que concordam com vários pressupostos sociais e econômicos
– neoliberalismo! – da extrema direita, mas se escondem atrás de uma falsa
isenção à espera que um líder moderado de centro caia dos céus e continue
realizando as mesmas políticas, mas com palavras mais amenas e vagos acenos vazios
e inócuos aos grupos identitários.
RAÇA X CLASSE X
GÊNERO X ORIENTAÇÃO SEXUAL = POLÍTICA
High Blood Exhibit Boils Down Issues of Race, Gender, Sexuality & Politics.
Em pleno século 21 muitos de nós progressistas julgávamos ultrapassada a falsa dicotomia colocada na temática antirracista entre privilegiar a discussão identitária (no caso a questão racial) ou a discussão social focada nas condições de pobreza impostas, tanto nos EUA quanto na maior parte do continente, aos afrodescendentes.
Esse debate não é exatamente
novo nem restrito ao universo antirracista, entretanto. Os movimentos
feministas e LGBTQI vivem às voltas com questões semelhantes.
Muitos companheiros da esquerda criticam
os movimentos identitários por não defenderem uma pauta política mais ampla, incorporando
ao discurso de raça, gênero e orientação sexual uma retórica de transformação
social anticapitalista e antiburguesa.
Outros criticam tais movimentos,
acusando-os de dividir os trabalhadores, tirando o foco da luta econômica. Ora, trata-se de uma falsa dicotomia!
Afrodescendentes no Brasil são,
na maioria das vezes pobres e, afastados desde cedo dos bancos escolares pela
necessidade de ganhar o pão de cada dia. Mas, mesmo quando alcançam a média de
estudos de um homem branco, são preteridos nos melhores empregos, nos cargos de
chefia e nas funções que permitem maior visibilidade social e melhores ganhos
econômicos. Idem em relação às mulheres. Gays e lésbicas, então, nem se fale. São
relegados a alguns guetos e subguetos profissionais, mal obtendo o próprio
sustento material e ainda sendo submetidos à violência de todos os tipos,
notadamente das forças policiais e de bandos de fascistas homofóbicos,
frustrados e mal resolvidos sexualmente.
Então, por que não se discutir
pautas identitárias juntamente com as questões econômicas, a violência e o
preconceito institucionais?
Mas, voltando ao episódio dos
EUA ficam algumas suspeitas no ar:
1-
Embora tenha trazido um novo fôlego ao combalido
Partido Democrata, o movimento dos Socialistas Democráticos da América não é
muito bem visto por boa parte da burocracia partidária, uma vez que abalou o
poder de alguns “senhores feudais” e ajudou a arejar alguns feudos
consolidados. Contra a vontade dos donos dos feudos, diga-se!
Exemplo: Alexandria Ocasio-Cortez, uma das estrelas em ascensão do movimento, conquistou em 2018 a indicação do 14º distrito da cidade de Nova Iorque para a Câmara dos Representantes (Câmara dos Deputados), derrotando Joseph Crowley, dirigente, burocrata, lobista e raposa velha e escolada da política partidária. Ocasio-Cortez mobilizou jovens, imigrantes e trabalhadores, o que foi saudado por muitos, mas irritou o establishment partidário nova-iorquino;
2-
O movimento mencionado nem é assim tão de
esquerda. No Brasil Ocasio-Cortez talvez fosse filiada ao PSB ou militasse na
ala mais conservadora do PT. Mas estamos falando dos EUA! Embora exista nesse
país vários partidos, organizações e movimentos de esquerda – sim, eles
existem! – desde o fim da Segunda Guerra Mundial, republicanos e democratas, às
vezes sem grandes e significativas diferenças, alternam-se no legislativo, nos
governos estaduais e na presidência da república. A ferocidade da “caça às
bruxas”, ou seja, do “Red Scare”, a paranoia anticomunista que tomou conta dos
EUA nos anos iniciais da Guerra Fria, praticamente interditou os partidos de
esquerda. Desde a década de 1950, mesmo os políticos norte-americanos
progressistas fugiam da pecha de “esquerdista”, que lhes poderia trazer
problemas, hostilidade do eleitorado e afugentar polpudas doações de campanha.
Rendia muito mais dividendos políticos se declarar a favor da segregação racial
do que se assumir como socialista. Ou comunista. Ou trabalhista. Ou
socialdemocrata. Até alguns tons de liberalismo eram considerados suspeitos
nessa época.
3-
O velho Partido Comunista dos EUA, tratado pela
historiografia tradicional apenas como um apêndice da espionagem soviética
durante a Guerra Fria – o que é uma injustiça! – apesar dos seus inúmeros
defeitos, tentou, principalmente nas décadas de 19340 e 1940, integrar
trabalhadores brancos e negros. O que valia aos comunistas os insultos
clássicos desferidos pela escória segregacionista do sul, que os acusava de “nigger
lovers” (amantes de negros, com toda a carga sexual que o apelido carregava) e
muito frequentemente tentava-se associar o movimento pelos direitos civis ao
grande “complô comunista”. O célebre
poema “América” do poeta beatnik Allen Ginsberg satiriza essa paranoia.
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